sexta-feira, 7 de julho de 2017

ERAM COMUNISTAS AS NOSSAS TENDÊNCIAS


Rómulo de Carvalho, a determinado passo das suas Memórias, fala de alguns dos seus amigos. Carlos e Sérgio são lembrados.

Este admirável rapaz (Sérgio) foi meu companheiro de estudo no liceu. Era uma inteligência comum mas de qualidades humanas excepcionais. Terminou o liceu e não continuou os estudos, em parte por dificuldades económicas e em parte por não se sentir com vocação para isso. Empregou-se e foi funcionário dos Correios. Com ele pensei e aprofundei a política; em comum debatemos, dia-a-dia, o futuro dos homens. Gizámos e desencadeámos devastadoras revoluções sociais naquele pequeno quarto, à sombra da bandeira vermelha da foice e do martelo. Eram comunistas as nossas tendências e por isso nos entendíamos bem, arrasando o capitalismo, lendo e comentando o jornal operário de então, A Batalha. Falávamos em voz baixa por causa dos vizinhos e não conservávamos em nossas casas nenhuma das publicações clandestinas que nos chegavam às mãos. Rasgávamos tudo depois de rangermos os dentes com aqueles excitantes. Apesar da sua timidez colaborou muito no Liberdade, quase em todos os números, e era homem para se sacrificar pelos seus ideais de justiça social.
(…)
É curioso o modo como convivíamos, eu e os meus saudosos amigos. Havia entre nós a máxima intimidade, a máxima confiança e, contudo, dir-se-ia que éramos cerimoniosos uns com os outros. Tínhamos atenções mútuas, delicadezas de trato, e até rodeávamos de palavras cautelosas certas conversas próprias de rapazes acicatados pelos impulsos eróticos. A culpa era toda minha porque os escolhi à minha imagem e semelhança e neles procurei os meus virtuosos defeitos. Contudo tenho a impressão de que as relações entre todos, amigos e não amigos, seguiam código semelhante.
Hoje, nesse aspecto, tudo se aviltou, querendo com isto dizer que as relações entre as pessoas, jovens ou não, se degradaram, isto ´+e, baixaram de grau, seguindo determinada escala de valores em que cada valor tem o seu grau, estou a querer fugir à inutilidade de afirmar que o passado era melhor. Era diferente, e reporto-me à escala de valores desse passado quando o comparo com o presente.

Rómulo de Carvalho em Memórias

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