quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

POEMA DA MEMÓRIA

Havia no meu tempo um rio chamado Tejo

que se estendia ao Sol na linha do horizonte.

Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia

exactamente um espelho

porque, do que sabia,

só um espelho com isso se parecia.

 

De joelhos no banco, o busto inteiriçado,

só tinha olhos para o rio distante,

os olhos do animal embalsamado

mas vivo

na vítrea fixidez dos olhos penetrantes.

 

Diria o rio que havia no seu tempo

um recorte quadrado, ao longe, na linha do horizonte,

onde dois grandes olhos,

grandes e ávidos, fixos e pasmados,

o fitavam sem tréguas nem cansaço.

Eram dois olhos grandes,

olhos de bicho atento

que espera apenas por amor de esperar.

 

E por que não galgar sobre os telhados,

os telhados vermelhos

das casas baixas com varandas verdes

e nas varandas verdes, sardinheiras?

Ai se fosse o da história que voava

com asas grandes, grandes, flutuantes,

e poisava onde bem lhe apetecia,

e espreitava pelos vidros das janelas

das casas baixas com varandas verdes!

Ai que bom seria!

Espreitar não, que é feio,

mas ir até ao longe e tocar nele,

e nele ver os seus olhos repetidos,

grandes e húmidos, vorazes e inocentes.

Como seria bom!

 

Descaem-se-me as pálpebras e, com isso,

(tão simples isso)

não há olhos, nem rio, nem varandas, nem nada.

 

António Gedeão de Poemas Póstumos em Obra Completa

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