O meu avô paterno foi uma das referências da minha vida de criança e adolescente.
Sempre que necessário, apresentava-se
assim:
«Mário Santos, republicano histórico,
benfiquista e anticlerical.»
Todos os anos, pelo 5 de Outubro, subia
ao Cemitério do Alto São João, depois à Praça António José de Almeida para uns
«Viva à República».
Morreu em 1968, com 93 anos.
Foi um dos muitos que morreu sem saber
qual a cor da liberdade.
Estava na Praça António José de Almeida,
quando, no 5 de Outubro de 1958, a PIDE prendeu o General Humberto Delgado.
O meu pai dizia-lhe que ele devia
deixar-se dessas romagens que não conduziam a nada.
«Dizes tu! Eu e o homem da bandeira
nunca falhamos!»
Referia-se a um republicano que, no 5 de
Outubro, aparecia com uma grande bandeira portuguesa. Esse chegou a ver a cor
da liberdade e, depois de Abril, foi militante do Partido Socialista.
O meu pai morreu em Junho de 1990.
Num 25 de Abril, 1988 (?), o meu pai whiscava,
eu gintonicava, Cecília Bartoli, em fundo, cantava Vivaldi, discorríamos sobre
os tempos idos, dos que estavam para chegar e ele batia na tecla de que o 25 de
Abril acabaria nas mesmas evocações-quase-solitárias do meu avô e dos
companheiros republicanos históricos.
Sucedeu nascer um desesperante silêncio,
agitei o gelo no copo, olhei a rodela de limão, murmurei para dentro de mim que
o meu pai era capaz de ter razão, mas deixei o silêncio escorrer…
Que nada perturbe esse silêncio… ainda
estou a ouvi-lo… e numa, difusa, vagamente avermelhada, imagem, admito ver o
meu avô e o homem da bandeira…
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