terça-feira, 17 de outubro de 2023

VARIAÇÕES DO BRANCO

Ergues o olhar: surpreendes por instantes essa hora

em que o mundo envelhece: ténues as variações do branco

parecem dissolvê-lo numa longínqua música, anterior à chuva

 

Ou será então a imagem submersa de um filme a preto e branco

 

Há próximo um branco vibrante: o da cal ainda recente

mas que a humidade salina já a espaços mordeu,

recortando as feridas cinza na varanda a que vens.

 

Não há ninguém aqui. Quem te chame, digo.

 

Há o branco baço na parede que em frente em vão separa

rua e praia. Tendo já transposto essa fronteira incerta

ou erguendo-se para lá dela há o branco pobre da areia:

 

As dunas plenárias sustentam os corpos deitados de mar e céu.

Aí é agora o grande branco: o clarão velado e difuso

que guarda e distribui a memória embaciada do azul

e do verde, do oiro e da prata — uma lembrança vã.

 

Tu escreves no visível do mundo essa névoa branca e desolada

 

que o motor da paisagem produz. As folhas do ar são como

se fossem as levíssimas pétalas, as vagas sílabas de uma neve –

e essa névoa engolfa, atrasa e apaga na travessia os simulacros

 

das coisas supostas e imaginadas que o mundo te envia

enquanto esperas por alguém que não virá

 

Manuel Gusmão

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