quarta-feira, 18 de outubro de 2023

AUTOBIOGRAFIA

A vida que levo é muto sossegada.

Passo os dias no café do Mike

a admirar os campeões

do Grupo Dante de Bilhar

e os viciados dos matraquilhos.

A vida que levo é muito sossegada

na zona leste da Broadway.

Sou americano.

Sempre fui um rapaz tipicamente americano.

Lia o Magazine dos Rapazes Americanos

e tornei-me escuteiro

nos subúrbios.

Sentia-me o Tom Sawyer

ao pescar caranguejos do rio na Bronx

mas a pensar no Mississípi.

Tive uma luva de baseball

e uma bicicleta American Flyer.

Distribuí o Woman´s Home Companion

às cinco da tarde

e o Herald Tribune

às cinco da manhã.

Ainda julgo estar a ouvir o barulho do jornal ao cair

nos terraços para onde eu o atirava.

Tive uma infância infeliz.

Vi Lindberg aterrar.

Olhei com saudade para o meu torrão natal

mas não vi nenhum anjo, ao contrário do Thomas Wolfe.

Fui apanhado a roubar lápis

no supermercado

no mesmo mês em que fui promovido a Escuteiro-Chefe.

Derrubei árvores para o Departamento da Agricultura

e sentei-me nelas.

Desembarquei na Normandia

num barco a remos que se voltou.

Vi os exércitos tão cultos

na praia de Dover.

Vi pilotos egípcios em nuvens púrpura

lojistas a correrem os taipais

ao meio-dia

salada de batatas e flores

em piqueniques anarquistas.

Estou a ler «Lorna Doone»

e uma biografia do João Máximo

que era o terror dos capitães de indústria

e tinha sempre uma bomba na gaveta da secretária.

Vi os homens da limpeza desfilarem

no dia comemorativo de Colombo

atrás das fanfarras ruidosas

e malcheirosas.

Há que tempos que não vou visitar os Claustros

ou as Tulherias

mas continuo a fazer tenção

de lá ir.

Vi os homens da limpeza desfilarem

debaixo da neve que caía.

Comi cachorros quentes nas feiras.

Ouvi o Discurso de Gettysburg

e os discursos de Ginsberg.

Gosto disto aqui

e não voltarei

para donde vim.

Também eu, como o Ginsberg,

viajei em vagões-jota vagões-jota vagões-jota.

Também eu viajei no meio de desconhecidos.

Estive na Ásia.

Estive com Noé na Arca.

Quando Roma foi construída

estava eu na Índia.

Estive na Manjedoura

com o Burro.

Da Montanha Branca

ao sul de São Francisco

vi o Distribuidor Eterno

e no Luna Parque vi a Mulher que Ri

na Barraca das Gargalhadas

sob uma bátega de água

mas sempre a rir.

Tenho ouvido à noite os ruídos

das grandes pândegas.

Tenho vagueado tão solitário

como as solitárias multidões.

A vida que levo é muito sossegada.

Passo os dias à porta do café do Mike

a ver o mundo passar por mim

em tão variados sapatos.

Empreendi uma vez

uma viagem a pé à volta do mundo

mas quando dei  por mim estava em Brooklyn.

Não consegui fugir à Ponte de Brooklyn.

Em silêncio maquinei

exílio e engenho.

Voei demasiado perto do sol

e as minhas asas de cera derreteram-se.

Ando à procura do meu Velho

que nunca conheci.

Ando à procura do Chefe Perdido

com quem voei.

Os jovens deviam ser exploradores.

O lar é o lugar donde se parte.

Mas a minha Mãe nunca me preveniu

de que havia cenas como esta.

Cansado do útero materno

descanso.

Tenho viajado.

Visitei a cidade dos Fantasmas.

Conheço a maçada das massas.

Ouvi chorar o Kid Ory.

Ouvi um trombone a pregar.

Ouvi Debussy

filtrado pelo meu lençol.

Dormi numa centena de ilhas

onde os livros eram árvores.

Ouvi pássaros

cujo chilreio parecia o dobrar dos sinos.

Usei calças de flanela

e passeei-me pela praia do inferno.

Vivi numa centena de cidades

onde as árvores eram livros.

Que metropolitanos que táxis que cafés!

Que mulheres de seios cegos

e membros perdidos no meio de arranha-céus!

Nas encruzilhadas

vi estátuas dos heróis.

Danton em lágrimas na entrada de um metropolitano

Colombo em Barcelona

a apontar nas Ramblas para o Ocidente

na direcção do American Express

Lincoln no seu trono de pedra

E um enorme Rosto de Pedra

no Dacota do Norte.

Bem sei que o Colombo

não inventou a América.

Ouvi uma centena de Ezra Pounds domesticados.

Deviam ser todos libertados.

Já passou imenso tempo desde que fui guardador de rebanhos.

A vida que levo é muito sossegada.

Passo os dias no café do Mike

a ler os anúncios classificados.

Li de ponta a ponta

as Selecções do Reader´s Digest

e notei a perfeita identificação

entre os Estados Unidos e a Terra Prometida

onde todas as moedas têm a inscrição

«Em Deus Confiamos»

mas as notas de dólar não a têm

porque elas próprias já são Deus.

Todos os dias leio os anúncios da secção «Precisa-se»

à procura de uma pedra uma folha

uma porta jamais encontrada.

Nas Páginas Amarelas

ouço a América a cantar.

Ninguém diria

que a alma passa crises.

Todos os dias leio os anúncios

e noto a ausência da humanidade

nessa triste pletora de caracteres de imprensa.

Vejo que esvaziaram o Lago de Walden

para no sue lugar construírem um parque de diversões.

Vejo que estão a obrigar o Melville

a comer a sua própria baleia.

Vejo que vem aí uma nova guerra

mas quando ela vier não estarei eu cá para tomar parte.

Li os desígnios do destino

escritos nas paredes do telheiro.

Fui eu quem ajudou o Kilroy a escrevê-los.

Marchei pela Quinta Avenida acima

tocando clarim num pelotão cerrado

mas apressei-me a voltar para o Casbah

à procura do meu cão.

Noto que há uma certa semelhança

entre os cães e eu.

Os cães são os verdadeiros observadores

dos altos e baixos

da terra de Molloy.

Calcorreei becos e vielas

Estreitas de mais para Chryslers.

Vi uma centena de carroças do leite sem cavalos

num lote de terreno devoluto em Astoria.

Tenho ouvido o solo do ferro-velho.

Tenho percorrido as auto-estradas

e acreditado nas promessas dos cartazes

Atravessado as planícies de Jersey

e visto as Cidades Planas

E sulcado as terras ermas de Westchester

cruzando-me com bandos errantes de nativos

em station wagons.

Tenho-os visto.

Eu sou o Homem.

Estive lá.

Sofri

um tanto ou quanto.

Sou Americano.

Tenho passaporte.

Mas não sofri em público.

E sou novo de mais para morrer.

Sou um homem que se fez a si-próprio.

E tenho projectos para o futuro.

Estou na bicha

para um bom emprego.

Talvez me mude

para Detroit.

Ando a vender gravatas, mas isso

não passa de um trabalho temporário.

Sou um tipo às direitas.

Sou um livro aberto

para o meu patrão.

Sou um mistério impenetrável

para os meus amigos mais íntimos.

A vida que levo é muito sossegada.

Passo os dias no café do Mike

a contemplar o umbigo.

Sou uma parte

da longa loucura deste corpo.

Tenho vagueado em vários bosques nocturnos.

Tenho-me amparado em portais embriagados.

Tenho escrito contos despenteados

sem qualquer pontuação.

Eu sou o Homem.

Sofri

um tanto ou quanto.

Sentei-me em cadeiras de cansaço.

Sou uma lágrima do sol.

Sou uma colina

onde os poetas correm.

Inventei o alfabeto

depois de observar o voo das gruas

que fazem letras com as pernas.

Sou um lago numa planície.

Sou uma palavra

numa árvore.

Sou uma colina de poesia.

Sou uma operação de «comandos»

na zona do inarticulado

como o Elliot.

Sonhei

que os dentes todos me caíam

mas a minha língua sobrevivia

para contar como foi.

Porque sou um silêncio

poético.

Sou um banco de canções.

Sou uma pianola mecânica

num casino abandonado

numa esplanada à beira-mar

num nevoeiro espesso

mas sempre a tocar.

Noto que há uma certa semelhança

entre a Mulher que Ri

e eu.

Tenho ouvido o som do Verão

na chuva.

Tenho visto raparigas nas faixas de paragem

vítimas de complicadas sensações.

Percebo as suas hesitações.

Sou um colhedor de frutos.

Tenho visto como os beijos

têm consequências de euforia.

Tenho-me arriscado

a ficar encantado.

Vi a Virgem

numa macieira em Chartres

e Santa Joana a arder

na Bela Union.

Tenho visto girafas em selvas e ginásios

com os pescoços como o amor

entrelaçados nas circunstâncias de ferro forjado

deste mundo.

Tenho visto a Venus Afrodite

sem braços no corredor cheio

de correntes de ar.

Ouvi uma sereia a cantar

no número um da Quinta Avenida.

Vi a Deusa Branca a dançar

na Rue des Beaux Arts

no dia Catorze de Julho

e a Bela Dama sem Mercê

a tirar macacos do nariz no Chumley´s.

Ela não falava inglês.

Tinha cabelo amarelo

e voz rouca

e não se ouvia o canto de nenhuma ave.

A vida que levo é muito sossegada.

Passo os dias no café do Mike

a observar os jogadores de bilhar de bolsas

integrado naquele cenário

devorando macarroni

e li algures

o Significado da Existência

mas esqueci

exactamente onde.

Mas sou o Homem

E estarei lá.

E talvez ainda faça falar

os lábios da gente adormecida.

E talvez transforme em relva

os meus cadernos de apontamentos.

E talvez ainda escreva o meu

anónimo epitáfio

pedindo aos cavaleiros

que se não detenham.

Lawrence Ferlinghetti em Como Eu Costumava Dizer

Sem comentários: