Dito
já que começaram as iniciativas que visam
registar o centenário do nascimento de José Saramago, acrescenta-se que irei
pegando num qualquer livro de José Saramago e copiarei dele uma frase, um
parágrafo, aquilo que constitui os milhares de sublinhados que, ao longo
dos muitos anos de leituras, invadiram os livros de José Saramago que habitam
a Biblioteca da Casa.
«E está neste pensar quando subitamente
uma casa à beira da estrada lhe entra pelos olhos dentro e o obriga a parar
adiante. É uma casa comum, de porta e janela parede da frente baixa, alta a de
trás, telhado tosco de duas águas. Grandes placas de reboco desapareceram, a
pedra está à vista. À janela há um homem de barba crescida, chapéu velho e sujo
na cabeça, e os olhos mais tristes que pode haver no mundo. Foram estes olhos
que fizeram parar o viajante. É caso decerto raro naquele lugar porque logo se
juntaram três ou quatro garotos, curiosos sem nenhum disfarce. O viajante
aproxima-se da casa e vê que o homem já saíra para a estrada. Veio sentar-se na
berma do caminho como se estivesse à espera. Puro engano; este homem não espera
ninguém. Quando o viajante lhe falou, quando fez as tolas perguntas que nestes
casos se fazem, mora aqui há muito tempo, tem filhos, o homem tira o chapéu,
não responde, porque não podem dar resposta, ou são-no de mais, aqueles
suspiros e trejeitos da boca. Aflige-se o viajante, sente que está a penetrar
num mundo de pavores, e quer retirar-se, mas são as crianças que o empurram
para dentro de casa onde nada mais há que negrume, mesmo estando aberta a
janela onde o homem espairecia. São negras as paredes descascadas de argamassa,
negro o chão, e negra naquelas sombras parece a mulher que está sentada a uma
máquina de costura. O homem não fala, a mulher pouco é capaz de dizer, ele
tolinho como um de Cristo que morreu e voltou, e tendo ido e vindo nem gostou
antes nem depois, e a mulher é irmã, trabalha naquela máquina quase às escuras,
cosendo trapos, esta é a vida de ambos, não outra. O viajante mastigou três
palavras e fugiu. Diante destas aventuras, padece de cobardia.
Não há mais fáceis filosofias que estas, e de nenhum risco: comparar os
esplendores da natureza, mormente passeando o viajante no Minho, e a miséria a
que podem chegar homens, ficando nela a vida inteira e nela morrendo.»
Hoje peguei na Viagem em Portugal, 1º edição, Círculo de Leitores, Março de 1981.
O que Saramago conta no pedacinho que
escolhi, (pág. 63 da edição do Círculo de Leitores), passa-se em Padim da
Graça, uma aldeia pertencendo ao município de Braga.
Quando a
Caminho publicou Viagem a Portugal sem as fotografais que constituem a edição
do Círculo de Leitores, Saramago, escreveu algures que ficou
feliz.
O livro
tomava o tamanho dos tais livros de capa amarela.
Propriamente sobre o livro diz Saramago:
«Viagem
a Portugal é provavelmente o último livro sobre um Portugal que já não existe,
que estava a deixar de existir naquele momento.»
O Círculo de Leitores pretendia
assinalar os 10 anos de existência em Portugal e pediu a Saramago um guia de
viagem, algo que pudesse ser útil a uma pessoa que vai dar um passeio pelo país
e que leva um livro com informação dos lugares, dos restaurantes, dos hotéis.
Saramago disse aos directores do Círculo
que não conseguia fazer um livro desse género e ocorreu-lhe dizer:
«Se
vocês quiserem, se estiverem interessados nisso, eu posso fazer uma viagem e
depois conto»
Os directores pediram uns dias para
pensar na proposta.
Três, quatro dias depois, disseram-lhe
para fazer a viagem.
E o viajante partiu à descoberta do que
não sabe, porque ninguém é viajante se não for curioso.
«O
viajante viajou no seu país. Isto significa que viajou por dentro de si mesmo.»
Aconteceu um livro lindíssimo.
Saramago diz que aquele Portugal já,
praticamente, não existe.
Resta-nos o livro - «É alguma coisa que anda a dever aos olhos.»
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