Aí por volta dos meus
18 anos, não só por motivos académicos mas também por gosto pessoal,
interessei-me bastante pela América Latina e procurei ler o que tinha ao alcance
da mão acerca de toda essa apaixonante região.
Para um jovem dessa
idade que se dizia “de esquerda”, Cuba não poderia deixar de ter uma mística e
um encanto muito especiais.
Li bastante sobre
Cuba, nesses tempos, e ainda me lembro que o primeiro livro que li foi um
relato de viagem escrito pelo ator Rogério Paulo e publicado, se não me engano,
pela Seara Nova, que se chamava, precisamente, “Um Actor em Viagem”.
Depois disso, acabei
por ter de estudar um pouco mais em profundidade a História de Cuba e da sua
Revolução, já que, enquanto estudante universitário de Sociologia, também me
propus elaborar alguns pequenos trabalhos académicos sobre esse tema,
nomeadamente para essa extraordinária cadeira que se chamava “Movimentos
Revolucionários do Séc. XX”…!
Sabia muito bem, por
isso, quem era Nicolás Guillén, quando ele passou por Lisboa em Junho de 1975,
andava eu, então, pelos meus 21 anos.
Como ele iria estar
presente na Feira do Livro para assinar autógrafos, apressei-me a ir buscar uma
velha antologia brasileira que tinha comprado na livraria “Boa Leitura”, ali
para as bandas do Areeiro, e na hora exata aí estava eu na pequena bicha que
aguardava o tão desejado contacto com o Poeta.
Enquanto esperava,
deu para perceber que de simpático Nicolás Guillén não me parecia ter nada e
levava a cabo a sua missão de rabiscar páginas com um ar que na altura me
pareceu ser de indisfarçável frete. Nunca o vi sorrir nem trocar qualquer palavra
mais amistosa com quem lhe solicitava o autógrafo, a não ser para lhe perguntar
qual o nome a registar…
Eu tive um pouco mais
de sorte, como perceberão…
Chegada a minha vez,
entreguei-lhe o livro e disse-lhe que me chamava Luís Miguel.
O Poeta mirou e
remirou o livro, folheou-o com atenção e, no final, perguntou-me onde o tinha
comprado.
Manifestamente,
Nicolás Guillén não sabia da existência dessa edição e teria, certamente,
gostado de ficar com o meu exemplar se eu, naquele momento, tivesse tido a
gentileza de o oferecer, coisa que, lamentavelmente, não fiz… Desculpei-me,
depois, para mim próprio, dizendo que, mais tarde ou mais cedo, o livro iria
acabar perdido nas enormes estantes da Casa de las Américas, instituição
cultural cubana da qual Guillén era o Diretor, mas a verdade é que tão contente
fiquei com o meu autografo nesse livro “raro” que quando cai em mim já ia longe
e era tarde demais para voltar atrás...
O pobre do livro já
está a cair de velho, mas aqui vos deixo a sua capa e a página com o autógrafo,
datado de 28 de Junho de 1975.
Mas se vos conto tudo
isto é apenas para que possam perceber melhor a história que agora vos irei
contar.
Quanto visitei Cuba
pela primeira e única vez, em 2015, percebi que a viagem que me tinha sido
programada incluiria uma noite em Camaguey, terra natal de Nicolás Guillén, o
que me permitiria dar um salto à casa onde o Poeta nasceu, a qual - pensei eu -
não poderia deixar de estar transformada num museu em sua honra.
Uma vez no centro da
cidade, não me foi difícil encontrar a casa, mas o maior espanto foi vê-la
encerrada e meio abandonada, sem qualquer outra indicação a não ser um pequeno
busto que confirmava ser mesmo esse o local do nascimento do Poeta.
Fiquei absolutamente
incrédulo e escandalizado.
Então era assim que a
Revolução Cubana homenageava a memória do seu grande Poeta Nacional, que só
ombreava, em prestígio, com José Marti…?
O Poeta que a apoiou
desde o primeiro dia e a cantou, a Cuba e ao Mundo, através de vários poemas
memoráveis, como é o caso deste celebérrimo “Tengo”, de 1964, que não resisto a
reproduzir aqui, embora ele nos seja, nos dias de hoje, tão doloroso de se ler
por sabermos que, afinal, nem tudo foram só rosas no percurso de Cuba, como
nele se deixa entender…
“Quando me vejo e
toco,
eu nunca mais João
sem Nada
e hoje João com Tudo,
deito os olhos, vejo.
Vejo-me e toco-me
e pergunto como pôde
ser.
Tenho: - vamos a ver,
tenho o gosto de ir
pelo meu país,
dono de quanto nele
existe,
vendo bem de perto o
que antes
não tive nem podia
ter.
Posso dizer:
colheita,
Posso dizer: monte,
Posso dizer: cidade,
Posso dizer:
exército,
exército, posso
dizer,
agora meus para
sempre, e teus, nossos,
amplo esplendor
de raio, estrela,
flor.
Tenho: - vamos a ver,
tenho o gosto de ir
eu, camponês,
operário, gente simples.
Tenho o gosto de ir
(é um exemplo)
a um banco e falar
com o administrador,
não em inglês,
não em senhor,
mas dizer-lhe compañero,
como se diz em espanhol.
Tenho: - vamos a ver,
que sendo um negro
ninguém me pode
proibir
à porta de um dancing ou
de um bar.
Ou na receção de um
hotel,
gritar-me que não há
quarto,
um pequeno quarto e
não um quarto colossal,
um pequeno quarto
onde possa descansar.
Tenho: - vamos a ver,
que um guarda rural
não m’agarra e fecha
na prisão,
nem m’arranca e me
expulsa da minha terra
no meio do caminho
real.
Tenho que, como tenho
a terra, tenho o mar,
no country
no high-life,
no tennis,
e no yatch,
de praia em praia e
costa a costa
gigante azul aberto
democrático:
enfim, o mar.
Tenho: - vamos a ver,
que já aprendi a ler,
a contar,
tenho que já aprendi
a escrever
e a pensar
e a rir.
Tenho que já tenho
onde trabalhar
e ganhar
o que preciso para
comer.
Tenho: - vamos a ver
Tenho o que tinha de
ter.”
Noutros tempos a
linguagem poética de Guillén fora mais elaborada e floreada, mas estes eram
novos tempos de combate e esta poética mais crua e mais direta era, na altura,
a Poesia necessária…
E ao Poeta que lhe
dera, devotadamente, todo este apoio, agradecia o Governo de Cuba mantendo
quase ao abandono casa onde nascera…
Eu nem queria
acreditar...
Desolado, retomei o
caminho de regresso ao hotel, na companhia da minha filha Matilde que me
acompanhara nesse passeio, imaginando, para mim próprio, teorias da
conspiração… Será que, sem que eu o soubesse, Guillen teria caído em desgraça e
agora a sua memória pagaria as consequências…? Custava-me muito a acreditar,
mas a verdade é que em Cuba escritores caídos em desgraça pareciam ser o pão
nosso de cada dia...
E vinha eu a pensar
nisto quando, num pequeno largo, deparo com um casa apalaçada que, como quase
tudo em Cuba, aparentava já ter tido melhores dias e reparei que, agora, era
uma espécie de Centro Cultural que, à sua porta, anunciava um ciclo de cinema.
Li melhor e percebi que estava na delegação local da UNEAC, a União de
Escritores e Artistas de Cuba que, por ironia do destino, havia sido criada em
1961 por Nicolás Guillén com o objetivo de unir os intelectuais cubanos em
torno dos ideais da Revolução Cubana.
Que aquela nobre
instituição se preparasse para organizar um ciclo sobre “O Erostismo no
Cinema”, com “O Último Tango em Paris”, “O Império dos Sentidos” e muitos
outros não me pareceu nada estranho porque é sabido que para muitos, desde o
divino Marquês até George Bataille, o sexo é libertário, e o erotismo “a
aprovação da vida até na morte”, na célebre expressão deste último.
Entrei para
bisbilhotar, é claro, tanto mais que me apercebi que algures no interior havia
um pequeno bar e já estava na hora da minha cerveja de fim de tarde.
Não tive sorte
nenhuma porque não havia cerveja disponível e só me poderiam oferecer rum, se assim
o desejasse. Agradeci, disse-lhes que estava com muita sede e substitui tudo
por uma garrafa de água fresca.
Entretanto, uma das
muitas pessoas que se encontravam à conversa numa mesa grande ao fundo da sala
levantou-se e aproximou-se de mim, perguntando-me, com um ar simpático e
acolhedor, quem eu era e ao que vinha.
Ele apresentou-se,
por seu lado, dizendo-me que se chamava José (esqueci-me do apelido…), era
artista tocador de guitarra clássica, e que todos os companheiros que estavam
com ele à volta da mesa eram também artistas locais, porque, como eu já tinha
percebido, aquela era a delegação local da UNEAC. “Aquele ali mais
alto” – apontava ele para o homem que estava à cabeceira da mesa
– “é o nosso Presidente”.
No grupo, segundo me
informava José, havia outros músicos, como ele, pintores, escultores, críticos
de cinema e escritores, como era o caso do Presidente.3
José disse-me que
tinha vivido e trabalhado durante alguns anos em Paris, tendo optado por
regressar, há relativamente pouco tempo, ao seu país natal. E brincou comigo
com algumas frases em francês, quando eu lhe respondi que trabalhara durante
muitos anos numa empresa francesa e que falava quase tão bem francês como
português (o que é um manifesto exagero, diga-se em abono da verdade…!)
Aproveitando o rumo
cultural que a conversa tomara, contei-lhe a minha aventura da busca da casa de
Nicolas Guillen, manifestando-lhe a minha estupefação por ver assim quase
devotada ao abandono e ao esquecimento a casa natal do Poeta de “Buenos dias
Fidel!”...
Falei alto para que
ele percebesse bem a minha indignação e para que os outros lá no canto também
me ouvissem…
Enquanto eu falava,
José pegava-me no braço e pedia-me para falar francês, dando-me a entender que
lhe daria muito prazer recordar essa língua.
E eu dizia-lhe uma ou
duas frases em francês, e depois retomava o espanhol, falando-lhe da quantidade
de casas de escritores e outros artistas que já havia visitado por esse Mundo
fora, cujo excelente estado de conservação contrastava com o abandono a que
havia sido deixada a casa do grande Poeta cubano.
A força com que o
José me apertava o braço e me pedia para falar em francês aumentava de
intensidade e apercebi-me que a sua expressão facial começava a denotar ares de
algum transtorno e de alguma inquietação, que aumentava à medida que outros
companheiros se levantavam da mesa e se aproximavam de nós, provavelmente
alertados por tantas vezes eu estar a evocar o nome de Nicolás Guillén.
“Parle français!”, “parle
français!!!”, quase que me gritava ele...
E só então caí em mim
e pensei que esta insistência do José poderia não ter a ver apenas com o seu
simples desejo de voltar a ouvir a língua de Victor Hugo …
A verdade é que ali
estava eu armado em parvo, no meio de um grupo de apparatchiks cubanos,
a denegrir não só a política cultural do seu Governo, mas também a das próprias
autoridades locais…!
Sem procurar renegar
tudo o que tinha dito até então, fiz um autêntico flique-flaque e menti com
quantos dentes tinha…
Disse-lhes que em
Junho de 1975, enquanto membro da juventude do Partido Comunista Português,
tinha sido uma das pessoas que tinha tido a honra de acompanhar o Poeta durante
a sua visita a Portugal.
Vejam bem…! Militante
comunista eu, que nem sequer “compagnon de route” sou, embora tenha tido
o prazer de ter ido inúmeras vezes à Festa do “Avante!”…!!!???
Mas continuei,
imparável…
Contei-lhes a
história do autógrafo do livro, embora lhe tivesse dado o fim feliz que, na
devida altura, não tinha tido classe para o fazer. E acrescentei dizendo-lhes
que, com grande orgulho meu, meu o livro faria, hoje, certamente parte do
espólio do Poeta ou da biblioteca da Casa de Las Américas…!
E, para verem que não
mentia, até me referi à personalidade algo carrancuda do Poeta, coisa que
pareceu não ter espantado ninguém...
Para os impressionar
ainda mais e para os levar a compreender que eu estava do lado dos “bons”,
arranjei pretexto para debitar, algo forçadamente, alguns conhecimentos que
tinha acerca da História de Cuba, da sua Revolução e das suas Artes…!
De Artes Plásticas
cubana nada sei e quanto a escritores calei-me, não me fosse sair boca fora o
nome de algum dissidente e lá se borraria a pintura toda…!
Por isso, e para
grande espanto do crítico de cinema, vinguei-me naquilo que melhor conhecia: o
Cinema, claro está…
Falei-lhe de Tomás
Gutierrez Alea, Humberto Solás, Julio Garcia Espinosa, e de filmes cubanos
“clássicos” como “Memórias do Subdesenvolvimento”, “Lúcia” ou “Aventuras de
Juan Quinquin”. Dos documentários de Santiago Alvarez, Manuel Octavio Gomez,
José Massip ou Sara Gómez, tudo coisas que tinha na minha coleção privada e das
quais poderia falar com algum conforto.
O golpe de
misericórdia para o critico foi quando chamei Guttierrez Alea pela sua própria
alcunha cubana, que, por sorte, conhecia: Titón…
A reação que ele teve
foi idêntica à que eu teria se um dia um chinês chegasse ao pé de mim e
chamasse o Vasco Santana de “Zéquinha”…
O pobre abriu a boca
de espanto e terá pensado para consigo: “Ora
aparece-me agora aqui, vindo do outro lado do Mundo
capitalista, um tipo de calçõezinhos, sandálias de
pele, chapéuzinho de palha e óculos escuros a chamar Titón
por Titón….!!! Está tudo doido…!
Notem bem que, embora
me tenha esforçado bastante por isso, o meu objetivo último não era o de botar
boa figura a debitar conhecimentos… Eu queria é que eles percebessem que eu era
amigo de Cuba, que não tinha nada contra a política cultural do seu Governo e
que os meus comentários acerca da casa de Guillén eram autênticos e não tinham
segundas intenções...
Por sorte, a minha
estratégia resultou em pleno.
O ambiente
desanuviou-se e tornou-se, claramente, mais amistoso.
Por essa altura já eu
tinha sido pessoalmente apresentado a todos, incluindo ao Presidente, cujo
nome, Sergio Morales Vera, é o único que sei, por motivos que mais à frente
perceberão.
Puxaram-se as
cadeiras, formou-se um pequeno circulo e falámos.
José pegou na sua
guitarra e tocou-nos uma peça clássica cubana, cujo nome me disse mas esqueci.
O crítico de cinema
aconselhou-me dois livros acerca da História do Cinema Cubano que estava à
venda na Delegação e pelos quais paguei um preço simbólico.
Um dos escultores
guiou-me numa exposição de obras suas que estavam abertas ao público, naquele
mesmo local.
Para além de José e
do crítico, o Presidente foi aquele que mais falou comigo.
Disse-me que
conhecera Nicolas Guillén há muito tempo e que, de facto, a impressão que me
deixara não lhe era estranha, embora me confessasse que, na intimidade, o Poeta
era uma pessoa muito mais aberta e divertida do que aparentava à primeira
vista.
E explicou-me,
igualmente, que havia, desde há muito, um projeto para reabilitação da sua
casa, que seria retomado logo que possível, dando-me a entender que naqueles
últimos anos as prioridades em Cuba tinham sido outras.
Para conclusão da
minha visita ofereceu-me este pequeno livrinho fotocopiado que aqui vos mostro,
um livro de contos fantásticos chamado “El Descifrador y Otros Relatos”, muito
na linha de Juan Rulfo.
E, para culminar,
fizemos um brinde com rum, tendo eu percebido, pelo sinal que fez em direção ao
bar, que não era o da garrafa que estava exposta, mas o da “garrafa especial”…
Um memorável fim de
tarde de convívio que, por estupidez minha, poderia ter corrido mal.
Despedi-me do José
dizendo-lhe que naquela noite iríamos jantar mesmo ali ao lado, na “Casa de la
Trova” e perguntando-lhe se aceitaria ser nosso convidado.
Agradeceu muito, mas
não apareceu…
E deixou-me a pensar
no seu insistente “parle français!”...
Quisesse eu dizer mal
do Governo cubano, diria que naquele desesperado pedido estava o grito de todo
um povo amordaçado…
Mas nada disso me
passava pela cabeça…
Aconteceu-me estar em
Palma Soriano, uma pequena cidade no interior de Cuba, no dia 13 de Agosto, dia
em que Fidel Castro fez 89 anos, e houve festa rija no largo. Não me apercebi
que alguém lá estivesse a festejar forçado.
Vi em Cuba gente
muito humilde com a felicidade estampada no rosto.
Mas é claro que
também vi gente feliz, com lágrimas…
Interpreto o alerta
do bom do José como o de um intelectual que sabe muito bem que em Cuba há
coisas que se podem dizer à vontade, e outras que o bom senso aconselha a que
sejam ditas com maior cautela...
E aprendi a lição.
A partir daí, bico
calado e não mais ninguém ouviu de minha boca qualquer pergunta ou comentário
mais inconveniente…!
PS:
A tradução portuguesa
de “Tengo” é de Carlos Pereira e faz parte da Introdução ao livro “O Grande
Zoo”, editado em 1973 pela editora Centelha.
Texto e fotografias
de Luís Miguel Mira
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