Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar
alguns textos que por aqui foram sendo publicados.
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Ao longe, a morte acena a Sam Shepard e ele fica com o entendimento que os seus
leitores, ele próprio, merecem um último olhar sobre tabernas de cidades de
fronteira ou perdidas no meio do deserto, terras de apaches e saguaros, sonhos
e desventuras, olhar o céu, senti-lo perto de si, adormecer e acordar ao som do
cântico dos tordos, uma espécie de melancolia, deitado à espera que alguém o
encontre, algo de
muito seu que lhe faça companhia na última viagem.
«Há alturas em que não posso deixar de pensar no
passado. Sei que o presente é o lugar para se estar. Sei que me foi recomendado
por pessoas muito sensatas que permanecesse no presente o mais possível, mas o
passado apresenta-se. O passado não vem como um todo. Vem sempre em partes.»
Quem é que Sam espia?
Quem é que espia Sam?
Nem ele se lembra, ou sabe.
«Visto à distância. Isto é, a ver do outro lado da
estrada, é difícil dizer qual a idade dele por causa do alpendre fechado com
rede a toda a volta. Por causa dos óculos escuros a toda à volta. Roxos. O
Mascarilha. Bandido mascarado. Não sei o que está a proteger. Está
efectivamente dentro de um alpendre fechado, com insectos que zumbem, aves que
chilreiam, todo o tipo de coisas estivais que vão ocorrendo, no exterior –
borboletas, vespas, etc. -, mas é muito difícil dizer com exactidão a esta
distância e a idade que tem. O boné de beisebol, as jeans encardidas, o colete
velho.»
Sam Shepard começou a pensar no livro no
ano de 2016.
Escreveu-o depois em rascunhos manuscritos já que a
esclerose lateral amiotrófica que o atacou, impedia-o de dactilografar. Quando
já não conseguia escrever à mão, passou a gravar os textos e os filhos faziam a
transcrição para papel.
Patti Smith, amiga e antiga companheira, apoiou-o na
edição do manuscrito, quem mais o poderia fazer, ela que é uma eterna
frequentadora de sombras, fragilidades várias, visões de cemitérios perdidos
pelos mundos?
Sam fez a revisão do livro e ditou a versão final alguns
dias antes de morrer, a 27 de Julho de 2017. Tinha 73 anos.
«A Lua está a ficar cada vez maior. A Lua dos Morangos
(lua cheia do mês de Junho, Strawberry Moon, segundo nota do tradutor).
Iluminando a nossa pequena trupe. A Lua Cheia. Dois filhos e o pai, com toda
agente atrás. Seguindo pelo meio de East Water Street, e agora a noite está
mesmo clara. A lua cheia. Conseguimos e coxeámos pelas escadas acima. Ou
melhor, eu coxeei. Os meus filhos não coxearam, eu coxeei.»
Nas suas breves noventa e sete páginas, um livro
desesperado mas um belíssimo livro.
Não sabemos o que pensar daquelas palavras dos seus
últimos dias, não sabemos o que fazer quando fechamos o livro e o deixamos
suspenso entre as mãos.
«Aliás, já estou vazio. Do género de uma
concha», escreveu Sam, no aproximar da página final quando sente que
já não sabe como suportar a monotonia.
Texto publicado em 29 de Outubro de 2018.
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