quarta-feira, 28 de outubro de 2020

O TEMPO CONCRETO


 O tempo duro

com estas unhas de pedra

este hálito pobre

de órgãos esfomeados

estas quatro paredes de cinza e álcool

este rio negro correndo nas noites como um esgoto

 

O tempo magro

em que minhas mãos divididas

nitidamente separadas e caídas

ao longo dum corpo de cansaço

pedem o precipício a hecatombe clara

o acontecimento decisivo

 

O tempo fecundo

dos sonhos embrulhados repetidos como um hálito de febres

repassadas no travesseiro igual das noites e dos dias

das ruas agrestes e pequenas da mágoa

familiar e precisa como uma esmola certa

 

O tempo escuro

da peste consentida do vício proclamado

da sede amarfanhada pelas mãos dos amigos

da fome concreta dum sonho proibido

e do sabor amargo dum remorso invisível

 

O tempo ausente

dos olhos dum desejo de claras cidades

em que acenamos perdidos às soluções erguidas

com vozes bem distintas de cadáveres opressores

com gritos sufocados de problemas supostos

 

O tempo presente

das circunstâncias ferozes que erguem muros reais

dos fantasmas de carne que nos apertam as mãos

das anedotas contadas num outro mundo de cafés

e das vidas dos outros sempre fracassadas

 

O tempo dos sonhos

sem coragem para poder vivê-los

com muralhas de mortos que não querem morrer

com razões de mais para poder viver

com uma força tão grande que temos de abafar

no fragor dos versos disfarçados

 

O tempo implacável

em que juramos de pé viver até ao fim

maiores dos que nós ser todo o grito nu

pureza conquistada no seio da vida impura

um raio de sol de sangue na face devastada

 

O tempo das palavras

numa circulação sombria como um poço

de ecos incontrolados

de timbres inesperados

como moedas de sangue cunhadas numa noite

demasiado curta e com luar de mais

 

O tempo impessoal

em que fingimos ter um destino qualquer

para que nos conheçam os amigos forçados

para que nós próprios nos sintamos humanos

e este fardo de trevas esta dor sem limites

a possamos levar numa mala portátil

 

O tempo do silêncio

em que o riso postiço dos fregueses da vida

finge ignorá-lo enquanto soluçamos

de raiva de razão reprimida revolta

e os senhores de bom senso passeiam divertidos

 

O tempo da razão

(e não da fantasia)

em que os versos são soldados comprimidos

que guardam as armas dentro do coração

que rasgam os seus pulsos para fazer do sangue

a tinta de escrever duma nova canção

 

António Ramos Rosa de Viagem Através de Uma Nebulosa em Obra Poética I

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