Há uns bons anos atrás, na esplanada da tasca da Cilinha, em Setúbal, em torno de sucessivas travessas de esquilha (se não sabem o que é, vão ao dicionário…), abrilhantadas por muitos jarros de vinho tinto, falava-se de música e o meu amigo Carlos Guerreiro sentenciou, com a autoridade que só ele conseguia impor, que verdadeira música cubana, em Cuba, só na Casa de la Trova, em Santiago.
No que respeita à
música cubana (e não só…), o que o Carlos Guerreiro diz não se discute e
mentalmente tomei nota, convencido de que dificilmente algum dia iria ter
possibilidade de lá ir…
Alguns anos mais tarde essa oportunidade iria surgir, mas não sem que antes tivesse tido lugar uma épica batalha negocial, ao pé da qual o “Brexit” não passa de brincadeira de meninos…
Discutia, com a minha Caríssima Esposa, quantos dias haveria para praia, e quantos dias seriam destinados a conhecer Havana e o resto do país.
Regateava-se, com firmeza e determinação, um dia de praia e um dia de viagem, e cada um de nós esgrimia os seus argumentos, perfeitamente seguro da superioridade moral das suas convicções ideológicas.
E a coisa assim ficou: aproximadamente três semanas de viagem com uma semana de praia, tendo em relação a esta impondo como única condição que não fosse a confusão de Varadero, mas sim um Cayo mais discreto, que acabou por ser o Cayo Coco.
E assim ganhava luz a possibilidade de ir a Santiago confirmar o bom gosto do amigo Carlos Guerreiro.
É claro que quando penso na “verdadeira” música cubana me vêm logo à memória nomes como Campay Seguro, Rubén Gonzalez, Ibrahim Ferrer ou Omara Portuondo, que conheço por gentileza de Wim Wenders e Ry Cooder.
Quanto mais velho e
em mais bengalas se apoiar o cantor, melhor o seu canto. E se aparecer de
cadeira de rodas, é bom sinal…!
Chegados a Santiago de Cuba, não descansei enquanto não descobri onde ficava a “Casa de la Trova”, que por sinal era no centro, bem perto da Praça da Catedral, a qual estava em obras de restauração porque Sua Santidade não tardaria nada iria por lá passar.
Informei-me que nessa noite iriam lá cantar as “Morenas del Son”, que não fazia ideia nenhuma quem eram mas cujo nome não me augurou nada de bom… Apesar de tudo, não deixei de reservar o lugarzinho...
O dia passara-se bem, com uma excursão de manhã, incluindo uma visita ao lendário Quartel Moncada (hoje Ciudad Escolar 26 Julio) e a tarde livre para se passear, tendo eu aproveitado para meter o bedelho numa série de bares e lojas populares que tiveram o condão de não agradar nada à minha Caríssima Esposa, certamente imaginando o bom que seria poder estar, naquele momento, a apanhar sol de papo para o ar, em vez de se ver arrastada para lugares daqueles...
Regresso ao hotel, banho, curto repouso e a já tão aguardada decisão ser-me-ia confirmada.
Estava com dores de cabeça – garantiu-me – e não se sentia em condições de voltar a sair à rua e, muito menos, para ir ouvir música…
Era a falsa e gasta justificação, à qual já estou muitíssimo habituado…
Nova Iorque, Paris,
Londres, Roma, Viena de Áustria e até Moscovo, com as suas largas avenidas
apinhadas de enormes montras das mais conhecidas marcas de roupa e de
acessórios, não constituiriam qualquer inconveniente…
Mas Santiago de Cuba, à noite, “tá quieto ó preto”…! “Estou com dores de cabeça”...
Assustada pelo aspeto da boa e simples gente que encontrara na rua e nas lojas, que receio teria ela…?
De ser violada num beco esconso por um, dois, três, quatro, cinco cubanos imundos, enquanto me mantinham aprisionado…?
Muito pior ainda, que, num ápice, se visse despojada da T-Shirt, da mala, dos óculos ray ban ou das queridas sapatilhas de marca…?
Vá lá saber-se…
Acabei por ter de ir sozinho com a minha filha Matilde, que nos acompanhava na viagem.
Apanhámos um transporte para o Centro e começámos por ir jantar a uma esplanada que nos parecia animada. Já não me lembro bem o que comi mas, porventura imaginando que éramos um casal de pombinhos apanhado numa aventura exótica e pouco legal em terras de Cuba, os músicos em redor bombardeavam-nos com canções românticas… Acabavam uns e começavam outros, pesos no chapéu para a direita e pesos na caixinha de madeira para a esquerda, para que ninguém ficasse desconsolado...
A hora do espetáculo aproximava-se e até à Casa de la Trova não foram mais que algumas centenas de metros.
Sentámo-nos, pedimos as bebidas e vimos a casa começar a encher-se.
Quando já o amaldiçoava, o meu emissário dos charutos chegou em alvoroço, dizendo-me que, naquele momento, Cohibas só em caixa e propondo-me, em alternativa, três outros charutos pelo preço de um Cohiba. Passei-os entre os dedos, levei-os ao nariz (na altura ainda não havia Covid…) e dei o meu acordo, porque já tinha despachado a primeira bebida e não me apetecia nada continuar a beber sem fumar.
Entretanto, algum alvoroço no palco e os artistas preparam os instrumentos e faziam os primeiros ensaios de som.
E depois os meus
piores receios confirmaram-se inteiramente…
À espera de velhotes apoiados em bengalas, apanho com sete esculturais e agitadíssimas cubanas, cujas idades deveriam variar entre os vinte e picos e os trinta e muitos, que não pararam de se bambolear a noite toda. E também tivemos direito a dançarinos…
Música desta esperava eu encontrar no “Resort” de Cayo Coco, à beira da piscina e enquanto bebia uma enésima “piña colada”, mas nunca na “Casa de la Trova”...
Não é que cantassem e tocassem mal de todo, mas não eram aquelas as minhas expetativas.
Zangado com o meu amigo…?
Nem pensar… Pobre dele, que não pode adivinhar os constrangimentos que o turismo de massas vai impondo nos hábitos mais tradicionais daquela terras e daquelas gentes…
Arrependido de lá ter ido…?
Longe disso… Como me
poderia eu alguma vez arrepender de uma noite tão bem passada em Santiago de
Cuba, na companhia da minha Querida Filhota…?
Comi comida tradicional cubana, tive direito a música em privado, fumei um excelente “puro” acabadinho de enrolar… Que mais poderia eu desejar…? Só outras músicas, é claro...
Mas que se lixasse a música! Quando chegasse a Lisboa poria a rodar o “Buena Vista Social Club” para recordar o que é a boa música cubana...
E como prova de que não desejaria esquecer aquela noite, no final do espetáculo comprei às pequenas um CD e obriguei cada uma das morenaças a assiná-lo para mim.
Era uma daquelas velhas carcaças dos anos 50, que em Cuba se veem às centenas.
Do banco de trás exalava um cheiro tal a gasolina que tive de conter o bafo, não fosse fazer ir tudo pelos ares.
E, depois, o motorista arrancou de prego a fundo, feito doido, a uma velocidade estonteante. Eu só via peões e ciclistas a afastarem-se e os cruzamentos a passarem uns atrás dos outros sem que sentisse no carro um cheirinho, por pequeno que fosse, a travão.
Chegámos inteiros e sem ferir ninguém, mas confesso que não ganhei para o susto.
Esqueci-me de vos dizer que, à saída do hotel, a minha Caríssima Esposa me pediu, encarecidamente, que não levasse a máquina fotográfica Nikon a tiracolo.
Estupidamente, acedi, pelo que as únicas fotos que tenho dessa bela noite cubana são de muito má qualidade e foram feitas com o telemóvel da minha filha. Mas ela fez, igualmente, dois pequenos filmes que saíram bem e que vos darão uma ideia do que foram aquelas sensuais “Morenas del Son”.
PS:
Muito embora eu lhes tenha, desde o primeiro momento, dado o nome de “Morenas del Son”, o o plural e o “del” foram acrescento meu, porque o grupo se chama, simplesmente, “Septeto Morena Son”.
Reposta a verdade, tenho a confessar-vos que o nome que lhes dei me soa incomparavelmente melhor e que, para mim, elas ficaram a ser, eternamente, as “Morenas del Son”…!
Nota do editor: as enormes incompetências que me assistem em matérias de compudadores e por aí fora, não permitiram apresentar-vos os dois videos que a filha do Luís Miguel Mira registou na Casa de la Trova. Quando os transferi apareceu o recado: «O tamanho do ficheiro foi excedido. Desmarque um ou mais itens.»
Puro chinês e ainda por cima tinha um javali ao lume, não me poderia distrair.
As minhas desculpas à Matilde e aos viajantes deste Cais.
Para compensar (?), copiei do You Tube três momentos com As Morenas del Son.
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