domingo, 19 de julho de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.


TODA A NOITE CHOVEU

Sábado, 25 de Novembro de 1967.

Estava em Tavira a cumprir o serviço militar obrigatório.

Tinha vindo a Lisboa passar o fim-de-semana e aproveitar para tirar a medida ao 2º fato do casamento, que ocorreria em Dezembro.

A chuva fustigava Lisboa.

Perto das sete da tarde estávamos, eu e a Aida, no alfaiate, num 3º andar da Rua dos Fanqueiros, a fazer a prova do fato.

Um enorme trovão e ficámos às escuras.

As costureiras trouxeram um candeeiro a petróleo, algumas velas.

Muito à média luz, conseguiu o alfaiate fazer a prova possível.

Como não houve oportunidade para outras provas, o facto é que o fato nunca me assentou bem.

Também nunca foi coisa a que desse qualquer tipo de importância.


Saímos do alfaiate sem que a luz tivesse sido reposta.

A chuva desabava como um dilúvio.

Aguardámos bem perto de uma hora e acabámos por nos fazer ao caminho.

A forte ventania destruíra os chapéus-de-chuva, as gabardines estavam ensopadas em água, não protegiam coisa alguma.

Não havia transportes.

A Avenida Almirante Reis era um rio, o Martim Moniz era um lago, onde carros, tudo o que imaginar se possa, flutuavam.

Abandonávamos os vãos de escada quando a chuva aliviava um pouco, se é que num temporal como aquele se pode falar em momentos de alívio.

Um pânico indescritível apossara-se das pessoas.

Sem telefones não era possível avisar as famílias.

Ninguém sabia de ninguém.

Da Rua dos Fanqueiros até ao alto da Penha de França demorámos mais de três horas.


A rádio e a televisão apenas transmitiam o que a censura impunha, ou seja: nada!

Durante toda a noite e madrugada choveu.

Só no domingo começámos a ter uma ideia, pálida ideia, da tragédia que se abatera sobre Lisboa e arredores.

Os jornais, rigorosamente vigiados, davam notícia: 250 mortos.

«Lamento profundamente a tragédia e, na medida do possível, tudo farei para minorar o sofrimento das pessoas que necessitarem dos nossos socorros», palavras do ministro do Interior Santos Júnior.

Anunciava-se que o presidente Américo Tomás, oportunamente, visitaria alguns dos locais atingidos pela intempérie.


Joaquim Letria, jornalista do Diário de Lisboa, trinta anos depois, resumiu para o Diário de Notícias:

«A Censura cortava sobretudo o número de mortos e o que se referia às causas da tragédia e à incúria governamental e camarária que estava por trás da catástrofe.
No DL fomos, o Pedro Alvim e eu, destacados para cobrir os acontecimentos. Estivemos noites sem ir à cama e tínhamos de fazer a nossa própria contabilidade dos corpos (contávamo-los um a um, o que o Alvim imortalizou numa belíssima crónica intitulada «Os Mortos e os Fósforos») e todos os dias tentávamos actualizar esse número, que a Censura nunca deixava passar. Chegávamos às centenas, quando os números dos censores não ultrapassavam as dezenas.»

Depoimento do jornalista João Paulo Guerra:

«Eu das cheias de 67 lembro-me de um telex da Censura, para a redacção do Rádio Clube Português, pelas 3 da manhã, a dizer: «A partir de agora não morreu mais ninguém».

No seu livro, Os Segredos da Censura, César Príncipe, reproduz estas determinações dos coronéis:


César Príncipe dá-nos ainda uma outra, miserável, determinação dos coronéis da Censura, datada de 30 de Dezembro de 1967.

Referia o baile de passagem de ano, realizado no Palácio dos Valenças em Sintra:

«Não dizer que a receita se destina às vítimas das inundações.» 

No dia 4 de Dezembro o governo contabilizava 458 mortos.

O número definitivo de mortos nunca veio a ser conhecido, mas calcula-se que tenham morrido para cima de 700 pessoas.

A censura cortou,  retalhou tudo quanto assinalava ausência de infra-estruras, bem como a falta de apoio às populações.

Escreveu o jornalista António Valdemar:

«Terrível e insólito paradoxo: um regime político que tinha na Igreja católica um dos seus mais poderosos sustentáculos, remetia para Deus as culpas e responsabilidades da catástrofe.»
Diário de Notícias, num dos seus editoriais:

«Ocorre-nos perguntar se não estará alguma coisa profundamente errada com o sistema de colectores da capital.
Sim, é verdade, os colectores da cidade não estavam preparados para o anormal caudal de água que dos céus desabou, mas outros motivos existiam, ainda existem.
Por exemplo, o arquitecto Ribeiro Telles, sempre se bateu arduamente pelo desenvolvimento entre o ordenamento do território e a terra, sistematicamente chamou a atenção para o perigo de canalizar ribeiras ou secar o subsolo.
Nunca foi ouvido.»


Em Quintas, uma aldeola poucos quilómetros a norte de Vila Franca de Xira, morreram mais de cem pessoas.

O fatídico 25 de Novembro de 1967, pôs a nu a miséria em que a população da Grande Lisboa vivia.

A maioria das vítimas habitava barracas construídas nos cursos de água, em escarpas, onde calhava.

Estão passados 50 anos.

Há acontecimentos que nunca esquecem!

Há lições que nunca devíamos esquecer.

Acabamos por esquecer...

Volta e meia a desgraça das cheias, das inundações bate-nos, de novo. à porta.

Ouvem-se lamentos, as promessas de sempre.

Até um outro dia em que tudo volte a acontecer!

Texto publicado em 25 de Novembro de 2017

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