quinta-feira, 30 de julho de 2020

SUBITAMENTE AS PALAVRAS



 subitamente as palavras romperam de nós com
uma fúria que não lhes conhecíamos

quebraram os dolorosos casulos de domingo
quando todos os amigos decidiam partir
deixando-nos     naquela inesperada ausência
muito mais perdidos

mas pelo meio de todas as palavras agrestes                     
a tua recordação é de repente a palavra                       
mais agreste de todas
que risca no meu silêncio um destino de luas e marés     
a que é perigoso habituar-me assim
e     talvez por isso    avanço com dificuldade
pelas letras esquivas do teu nome
como se um animal bravio o rasgasse dentro de mim
e ele se tornasse     de uma hora para a outra
no meu crime mais imperdoável

como se te erguesses e dissesses ficarás
condenada por todos os desertos que espalhaste
sobre os meus dias       e terás a cor
de todas as feridas que abriste no meu sangue
e as tempestades vão alagar o teu ventre que não soube
resguardar os filhos que nele deixei
(como me disseste na única carta que de ti guardei e tu
sabe-se lá porquê        nunca escreveste)

e as palavras vão servir-nos apenas de passagem
para um mundo donde não se regressa
e o teu corpo ficará cada vez mais longe
- e as pessoas que em tempos nos amaram muito
vão agora escrever a nossa história
com as gotas de luz que sobraram
de todos os solstícios

adormecendo às vezes ligeiramente
entre dois capítulos mais tristes 

Legenda: pintura de Henri Fantin-Latour

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