subitamente
as palavras romperam de nós com
uma fúria que não lhes conhecíamos
quebraram os dolorosos casulos de
domingo
quando todos os amigos decidiam partir
deixando-nos naquela inesperada ausência
muito mais perdidos
mas pelo meio de todas as palavras
agrestes
a tua recordação é de repente a
palavra
mais agreste de todas
que risca no meu silêncio um destino de
luas e marés
a que é perigoso habituar-me assim
e
talvez por isso avanço com
dificuldade
pelas letras esquivas do teu nome
como se um animal bravio o rasgasse
dentro de mim
e ele se tornasse de
uma hora para a outra
no meu crime mais imperdoável
como se te erguesses e dissesses ficarás
condenada por todos os desertos que
espalhaste
sobre os meus dias
e terás a cor
de todas as feridas que abriste no meu
sangue
e as tempestades vão alagar o teu ventre
que não soube
resguardar os filhos que nele deixei
(como me disseste na única carta que de
ti guardei e tu
sabe-se lá porquê
nunca escreveste)
e as palavras vão servir-nos apenas de
passagem
para um mundo donde não se regressa
e o teu corpo ficará cada vez mais longe
- e as pessoas que em tempos nos amaram
muito
vão agora escrever a nossa história
com as gotas de luz que sobraram
de todos os solstícios
adormecendo às vezes ligeiramente
entre dois capítulos mais tristes
Alice Vieira em Dois Corpos Tombando na Água
Legenda: pintura de Henri Fantin-Latour
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