Aos
84 anos, morreu Luís Filipe Costa.
Foi outras coisas, mas é como homem da
rádio que o quero lembrar.
Essencialmente num noticiário do Rádio
Clube Português no dia em que a PIDE prendeu Palma Inácio, dirigente da LUAR.
Impedido de dar a notícia da prisão,
acabou o noticiário com a frase «Hoje esteve um dia de calor, mas esta noite
felizmente há luar!»
Respiguei os textos que aqui deixo sobre
a rádio, para lembrar o que a rádio ao longo dos anos da ditadura me deu e,
duma certa maneira, também como homenagem a Luís Filipe Costa no dia emque,
fisicamente, nos deixou.
O aparelho de rádio tinha um caixilho de
madeira e a face era como uma máscara cega, olhos e boca em panos. Havia a
mesma melancolia nos brados dos relatos, nas sinfonias, nas novenas de Fátima e
na voz quebrada dos discursos de estado. Como se o espírito nos desse sinal do
holocausto, alheadas sobre o enlace das silhuetas: estarmos vedadas de tanta
finura, veemência ou persuasão. Ainda hoje me assola a tristeza desses sons que
não escuto e me temo de um rádio aberto em surdina à minha beira. Vivíamos sob
esse rumor a que só mais tardiamente demos sentido, quando o hóquei patinado se
tornou uma paixão cívica.
Maria Velho da Costa em Missa in
Albis
Conheci um
guitarrista que dizia «a minha amiga rádio». Sentia um parentesco menos com a
música do que com a voz da rádio. A sua qualidade sintética. A sua voz única,
distinta das vozes que a atravessam. A sua capacidade de transmitir a ilusão de
gente a grande distância. Dormia com a rádio. Falava para a rádio. Discordava
da rádio. Acreditava numa Terra Longínqua da rádio da Rádio. Como achava que
nunca encontraria esta terra, reconciliou-se consigo mesmo a ouvir a rádio.
Acreditava que tinha sido banido da Terra da Rádio e condenado a errar
eternamente pelas ondas sonoras, ansiando por um posto mágico que o devolvesse
à sua herança há muito perdida.
Sam Shepard em Crónicas Americanas
Sam Shepard em Crónicas Americanas
Andava sempre
à pesca de qualquer coisa na rádio. A par dos comboios e dos sinos, a rádio
fazia parte da banda sonora da minha vida.
Bob Dylan em Crónicas
Já não estou muito capaz de trabalhar,
porque a memória, a vista, tudo isso inibe um tipo. Já não leio os jornais, não
consigo. A minha ligação com o mundo é a rádio.
Luiz Pacheco
«Ouça, importa-se de baixar mais o rádio?»
«Ora essa. Desculpe, tenho a mania de o
pôr muito alto.»
«Como os taberneiros.»
«Ou como os apreciadores de jazz. Como
as prostitutas baratas, se quiser. O rádio, Guida, é um vício de solitários.»
José Cardoso Pires em O Anjo
Ancorado
Durante o dia, a telefonia estava ligada
para o emissor clássico da Emissora Nacional. Apenas ao serão havia uma
interrupção do fluxo da grande música quando a voz do meu avô ordenava:
“Meninas vamos ouvir a BBC”. Mudava-se de onda durante os minutos com as
notícias de Londres lidas pelo Ferando Pessa ou pelo Augusto da Silva, sobre o
desenrolar da guerra. “Aqui Londres, Estação da BBC na banda dos 41 e 49
metros.
António Cartaxo em Quase Verdade
Como São Memórias
3 comentários:
Excelente homenagem a um Homem da rádio... e à rádio e às suas vozes.
Um histórico homem da rádio e da cultura e que voz!
No caminhar dos dias, chegamos a um degrau em que começamos a olhar para o lado, que tem um nome, mas que pouco gostamos de nomear.
Estes tempos em que vão partindo os que nos ajudaram nessa caminhada, são terríveis.
Apetece escrever uma série de coisas vividas, outras que se sabem, mas não sai nada. Então recorro a quem diz as coisas melhor do que podia eu dizer.
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