sábado, 4 de julho de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

O ANNUS HORRIBILIS DE SALAZAR

O segundo ano da década de 60, é o annus horribilis da ditadura de Salazar.

Efectivamente, nesse ano, começa o caminho, longo e difícil de 13 anos que há-de culminar na madrugada do 25 de Abril de 1974.

No dia 22 de Janeiro de 1961, o paquete Santa Maria, a navegar no alto mar, é assaltado, a 4 de Fevereiro, em Angola, ocorrem incidentes que serão o rastilho do deflagrar da guerra colonial, o apelo de Salazar: para Angola, rapidamente e em força, em Março, verifica-se golpe militar do General Botelho Moniz, em Julho a República do Benim intima Portugal a abandonar o Forte de São João Baptista de Ajudá e Salazar ordena ao responsável para o incendiar, em 19 de Novembro, Palma Inácio desvia um avião da TAP, que fazia a carreira Casablanca-Lisboa, lançando panfletos sobre a capital portuguesa, a 18 de Dezembro, a União Indiana invade Goa, Damão e Diu, por fim, no último dia do ano, ocorre o assalto ao Quartel de Beja.



Faz hoje 50 anos que umas escassas dezenas de idealistas portugueses e espanhóis, comandados por Henrique Galvão e Jorge Soutomaior, apoderaram-se do paquete Santa Maria. O plano designado por Operação Dulcineia, personagem do D. Quixote de Cervantes, consistia no desvio do navio, para posterior ocupação da colónia espanhola de Fernando Pó, de onde se partiria para Angola, iniciando um levantamento insurreccional contra as ditaduras ibéricas.



Para mais uma das suas viagens regulares às Américas, O Santa Maria largara de Lisboa a 9 de Janeiro de 1961. No dia 20 fez escala em La Guaira e é neste porto venezuelano que embarca o grupo de revoltosos. A caminho de Port Everglades, na Florida, com 612 passageiros e 350 tripulantes, precisamente à 1 hora e 45 minutos da madrugada de 22 de Janeiro de1961, o grupo domina os oficiais do navio. O terceiro piloto João José Nascimento Costa ofereceu resistência aos assaltantes e foi morto a tiro. A 23 de Janeiro, o navio aproximou-se da ilha de Santa Lúcia e desembarcou, numa das lanchas a motor, 2 feridos graves mais 5 tripulantes, comprometendo assim a possibilidade de atingir a costa africana sem ser detectado. No dia 25, o paquete, que passara a chamar-se Santa Liberdade, é localizado por um avião norte-americano.


A 2 de Fevereiro, o Santa Liberdade fundeou no porto brasileiro do Recife, os passageiros e tripulantes foram desembarcados, enquanto os revolucionários entregaram-se às autoridades brasileiras, vindo, posteriormente, a obter asilo político.


Nesse dia o paquete voltou a chamar-se Santa Maria e, embandeirado em arco, a 16 de Fevereiro de 1961, entrava na barra do Tejo.

Só no dia 24 de Janeiro os jornais publicam a nota oficiosa do governo, dando conta do assalto ao Santa Maria. E os seus editoriais expressam a indignação face ao acontecimento.

Também nesse dia, a Assembleia Nacional, antes da ordem do dia, ouve as vozes de repulsa dos deputados, srs. drs. Proença Duarte e Homem de Melo (conde de Águeda).

Da intervenção do sr.dr. Proença Duarte:

«Neste momento em que a alma nacional se encontra altamente emocionada e magoada, tenho eu por certo que interpretar o sentimento de todos os portugueses de boa vontade, seja qual for o seu credo político ou religioso afirmando aqui a sua repulsa e condenação deste acto de inqualificável indignidade.»


Da intervenção do sr. Conde de Águeda:

E como há circunstâncias em que o coração carece do auxílio da inteligência para transbordar de indignação e de patriotismo, desse patriotismo que é apanágio de todos nós. É, pois, o coração, e só ele, que, num grito indignado protesto, verbera o acto de pirataria praticado no Mar das Caraíbas, contra um navio português e se envergonha por saber que o chefe dos ladrões do mar pôde um dia estar sentado nestas cadeiras, fazendo parte da representação nacional».

O editorial do “Diário de Notícias” tinha por título Crime Praticado contra Portugal e podia ler-se:

Registamos, como o faz o governo, que tais ocorrências não se passaram sem a resistência de oficiais e tripulantes, que deste modo honraram, até ao sacrifício da própria vida, as tradições da Marinha portuguesa.
A consciência dos portugueses condenará sem hesitações este crime praticado contra Portugal.

O título do editorial de O Século era Unamo-nos os de Boa Têmpera e terminava assim:


«Unamo-nos os milhões que somos contra esse escasso cento de renegados; unamo-nos os de boa têmpera, indomáveis na vontade, prontos ao sacrifício. Portugal chama-os. Responderão: Presente.»


O editorial do Diário da Manhã,  Quando o Ódio se Alucina, destacava:

«Se no aspecto pessoal, o acto cometido representa a condenação final dum crápula exibicionista, sem consciência moral, que se perdeu definitivamente nos caminhos do crime, no aspecto politico é a prova irrefutável do que são e do que não são capazes os criminosos que publicam panfletos onde é nítida a intenção comunista, desagregadora da unidade dos homens e das terras da Nação portuguesa – e acabam por cair, de forma a não deixarem dúvidas, no assalto à mão armada, no roubo, no assassínio, na prática pura e simples da pirataria.»

Título do editorial de O Primeiro de Janeiro: Absolutamente abominável, do jornal  A Voz: Preferiram cair a render-se, das Novidades: Queremos Ser um Povo que não se demite, do Diário Ilustrado: Indignação e Revolta, do Jornal de ComércioRespeite-se Portugal, do Diário de Lisboa: Acto Insólito, do Diário PopularUm Crime Inédito contra a Pátria e a Civilização, do Jornal de Notícias: Todos os Portugueses Sentem a Maior Repulsa, de O Comércio do PortoNão há Explicação nem Justificação.


Em Setembro do ano passado, estreou Assalto ao Santa Maria um filme de Francisco Manso, com argumento de João Nunes, e Vicente Alves do Ó.

Segundo Francisco Manso, o filme retrata a epopeia e a aventura quixotesca do assalto ao paquete Santa Maria envolvido por uma história de amor entre uma passageira, filha de um apoiante de Salazar, e um dos revolucionários.

Texto publicado no dia 22 de Janeiro de 2011.

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