Último Caderno de Lanzarote
José Saramago
Capa: fotografia de Sebastião Salgado
Porto Editora, porto, Outubro de 2018
Este é o tempo em que
passam vinte anos sobre a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José
Saramago.
Por sinal o ano em
que, por motivos literopornográficos, o Prémio não foi atribuído.
Voltará a ser?
Dizem-nos que o 6º volume de Cadernos de
Lanzarote ficou perdido no disco rígido que Saramago utilizava para escrever os
seus livros.
Esse livro O Último Caderno de Lanzarote, que
corresponde ao diário de José Saramago em 1998, o ano em que recebeu o Prémio
Nobel da Literatura, foi publicado em Outubro.
Contam-nos que a
pasta Cadernos de Lanzarote estava no computador de José
Saramago, e sempre que Pilar del Río lá entrava pensava que continha apenas os
cadernos que já estavam publicados. Mas, no final de Fevereiro - quando
estava à procura de uma referência a uma determinada conferência, fez o
que nunca tinha feito. Clicou na pasta e deparou-se com: caderno 1, caderno 2,
caderno 3, caderno 4, caderno 5 e caderno 6…
Pilar del Río sabia
que existiam cinco cadernos e que havia outros textos dispersos que Saramago
tinha escrito, mas pensava que estavam por organizar. De repente, ficou
surpreendida ao encontrar um caderno completo que nunca tinha sido publicado.
Aceitemos a história
tal como nos contaram.
À pergunta de
Zeferino Coelho para quando mais um
volume dos Cadernos, Saramago terá dito que chegara ao seu fim.
Mas por rotina, o que
quer que seja, foi alinhavando palavras, temas, efemérides e ideias.
A publicação deste
Último Caderno reflecte o desejo que uma leitora, durante uma sessão de
autógrafos na Feira do Livro do ano de 1995, colocou a Saramago:
«Uma leitora na Feira: «Para o ano que vem teremos mais Cadernos?» respondo medievalmente como de costume:
«Vida havendo e saúde não faltando…» E ela: É que quero ler neles a notícia do
Prémio Nobel…»
Ponho a cara de sempre, sorriso contrafeito, tonto e de pouco caso,
agradeço a gentileza do voto, e passo a assinar o livro que o leitor seguinte
me apresenta. «Eu também…», diz este, que ouviu a rápida troca de palavras.
Desta vez fico sem saber que sorriso pôr. O terceiro leitor, felizmente, é dos
calados»
Mas não há muito a
ler naquela dia de 8 de Outubro de 1998. Apenas tópicos para futuro desenvolvimento
posterior:
«Aeroporto de Frankfurt. Prémio Nobel. A hospedeira. Teresa Cruz.
Entrevistas.»
Comprei o livro logo
que saiu, cheirava àquele bom velho cheiro das tipografias.
Li-o de uma penada,
tenho regressado a algumas páginas.
Não é bem o Saramago
que gosto.
Aliás, sempre li os Cadernos de Lanzarote com um pé atrás.
Nunca me
entusiasmaram.
Este último caderno
começa no dia 1 de Janeiro de 1998 e termina no final desse ano, mas inclui
também duas entradas relativas ao primeiro mês do ano seguinte, uma a 9 de
Janeiro e outra a 14 de Janeiro.
E encontramos Saramago,
no primeiro dia do ano, às voltas com o vento que envolve a casa:
«Durante a noite, o vento andou de cabeça perdida, dando voltas
contínuas à casa, servindo-se de quantas saliências e interstícios encontrava
para fazer soar a gama completa de instrumentos da sua orquestra particular,
sobretudo os gemidos, os silvos e os roncos das cordas, pontuados de vez em
quando pelo golpe de uma persiana mal fechada. Nervosos, os cães lançavam-se de
rompante pela gateira da porta da cozinha (o ruído é inconfundível) para irem
ladrar lá fora ao inimigo invisível que não os deixava dormir. Manhã cedo,
antes mesmo do pequeno-almoço, descia ao jardim para ver os estragos, se os
houvera. A força da ventania não tinha esmorecido, bem pelo contrário, sacudia
com injusta ferocidade os ramos das árvores, sobretudo os da acácia, que com
uma simples e bonançosa aragem s e deixam mover. As duas oliveiras e as duas
alfarrobeiras, novas ainda, pelejavam bravamente, opondo aos esticões do
malvado a elasticidade das suas fibras juvenis. E as palmeiras, essas, já se
sabe, nem um tufão as consegue arrancar. Com os catos também não valia a pena
preocupar-me, resistem a tudo, chegam a dar a impressão de que o vento faz um
rodeio quando os vê, passa por eles de largo, com medo de se espetar nos
espinhos.. Ao longo do muro, os pinheiros canários, em fila, mais desgrenhados
que de costume, cumpriam o dever de quem foi colocado na linha da frente:
aguentar os primeiros choques. Tudo parecia estar em ordem, podia ir preparar o
meu pequreno-almoço de sumo de laranja, iogurte, chá verde e torradas com
azeite e açúcar»
Viajamos pelo livro
para pararmos a 5 de Janeiro quando Saramago regista a morte de Ilda Reis, mãe
de sua filha Violante.
Um toque de
sensibilidade, de ternura:
«Morreu a Ilda. A Ilda era a Ilda Reis, que nos tempos de rapariga
começou a sua vida de trabalho como datilógrafa dos serviços administrativos
dos Caminhos de Ferro, e depois, obrigando um corpo demasiadas vezes sofredor,
esforçando a tenacidade de um espírito que as adversidades nunca conseguiram
dobrar, se entregou à vocação que faria dela um dos mais importantes gravadores
portugueses. Gozou dessa felicidade substituta que o êxito costuma vender caro,
mas tinha-lhe fugido o simples contentamento de viver, As sua gravuras e as
suas pinturas foram em geral dramáticas, cindidas, autorreflexivas, de
expressão tendencialmente esquizofrénica (diga-se sem nenhuma certeza), como se
teimasse ainda em procurar uma complementaridade para sempre perdida. Fomos
casados durante vinte e seis anos. Tivemos uma filha.»
Nova paragem a 19 de
Janeiro para registar a morte de Maria Judite de Carvalho:
«Chega-me aqui a notícia da morte de Maria Judite de Carvalho. Nunca li
uma página sua em que não pensasse na pessoa que a tinha escrito. E creio que
ela o queria assim. Que o leitor compreendesse que do outro lado não havia
estado apenas uma escritora, mas sim alguém que, conhecendo como raros a arte
do conto e as íntimas ressonâncias de cada palavra, usava essa arte e esse
sentido musical para dizer quem era. Com obstinação, mas também com
simplicidade e discreta reserva. Como Irene Lisboa, ao lado de quem a história
da Literatura lhe guardará lugar, o alcance da sua voz era o espaço do coração.
O ser que foi Maria Judite de Carvalho já não pertence ao mundo dos viventes,
mas podemos encontrar nos seus livros tudo o que ela quis que da sua pessoa se
soubesse.»
A 26 de Outubro:
Morte de José Cardoso Pires.
Tantos outros
acontecimentos espalhados pelo livro que apenas referem propósitos para futura
abordagem.
Que não aconteceria.
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