terça-feira, 11 de dezembro de 2018

ÚLTIMO CADERNO DE LANZAROTE


Último Caderno de Lanzarote

José Saramago
Capa: fotografia de Sebastião Salgado
Porto Editora, porto, Outubro de 2018


Este é o tempo em que passam vinte anos sobre a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago.

Por sinal o ano em que, por motivos literopornográficos, o Prémio não foi atribuído.

Voltará a ser?

Dizem-nos que o 6º volume de Cadernos de Lanzarote ficou perdido no disco rígido que Saramago utilizava para escrever os seus livros.

Esse livro O Último Caderno de Lanzarote, que corresponde ao diário de José Saramago em 1998, o ano em que recebeu o Prémio Nobel da Literatura, foi publicado em Outubro.

Contam-nos que a pasta Cadernos de Lanzarote estava no computador de José Saramago, e sempre que Pilar del Río lá entrava pensava que continha apenas os cadernos que já estavam publicados. Mas, no final de Fevereiro - quando estava à procura de uma referência a uma determinada conferência, fez o que nunca tinha feito. Clicou na pasta e deparou-se com: caderno 1, caderno 2, caderno 3, caderno 4, caderno 5 e caderno 6…

Pilar del Río sabia que existiam cinco cadernos e que havia outros textos dispersos que Saramago tinha escrito, mas pensava que estavam por organizar. De repente, ficou surpreendida ao encontrar um caderno completo que nunca tinha sido publicado.

Aceitemos a história tal como nos contaram.

À pergunta de Zeferino Coelho para quando mais um volume dos Cadernos, Saramago terá dito que chegara ao seu fim.

Mas por rotina, o que quer que seja, foi alinhavando palavras, temas, efemérides e ideias.

A publicação deste Último Caderno reflecte o desejo que uma leitora, durante uma sessão de autógrafos na Feira do Livro do ano de 1995, colocou a Saramago:

«Uma leitora na Feira: «Para o ano que vem teremos mais Cadernos?» respondo medievalmente como de costume: «Vida havendo e saúde não faltando…» E ela: É que quero ler neles a notícia do Prémio Nobel…»
Ponho a cara de sempre, sorriso contrafeito, tonto e de pouco caso, agradeço a gentileza do voto, e passo a assinar o livro que o leitor seguinte me apresenta. «Eu também…», diz este, que ouviu a rápida troca de palavras. Desta vez fico sem saber que sorriso pôr. O terceiro leitor, felizmente, é dos calados»

Mas não há muito a ler naquela dia de 8 de Outubro de 1998. Apenas tópicos para futuro desenvolvimento posterior:

«Aeroporto de Frankfurt. Prémio Nobel. A hospedeira. Teresa Cruz. Entrevistas.»


Comprei o livro logo que saiu, cheirava àquele bom velho cheiro das tipografias.

Li-o de uma penada, tenho regressado a algumas páginas.

Não é bem o Saramago que gosto.

Aliás, sempre li os Cadernos de Lanzarote com um pé atrás.

Nunca me entusiasmaram.

Este último caderno começa no dia 1 de Janeiro de 1998 e termina no final desse ano, mas inclui também duas entradas relativas ao primeiro mês do ano seguinte, uma a 9 de Janeiro e outra a 14 de Janeiro.

E encontramos Saramago, no primeiro dia do ano, às voltas com o vento que envolve a casa:

«Durante a noite, o vento andou de cabeça perdida, dando voltas contínuas à casa, servindo-se de quantas saliências e interstícios encontrava para fazer soar a gama completa de instrumentos da sua orquestra particular, sobretudo os gemidos, os silvos e os roncos das cordas, pontuados de vez em quando pelo golpe de uma persiana mal fechada. Nervosos, os cães lançavam-se de rompante pela gateira da porta da cozinha (o ruído é inconfundível) para irem ladrar lá fora ao inimigo invisível que não os deixava dormir. Manhã cedo, antes mesmo do pequeno-almoço, descia ao jardim para ver os estragos, se os houvera. A força da ventania não tinha esmorecido, bem pelo contrário, sacudia com injusta ferocidade os ramos das árvores, sobretudo os da acácia, que com uma simples e bonançosa aragem s e deixam mover. As duas oliveiras e as duas alfarrobeiras, novas ainda, pelejavam bravamente, opondo aos esticões do malvado a elasticidade das suas fibras juvenis. E as palmeiras, essas, já se sabe, nem um tufão as consegue arrancar. Com os catos também não valia a pena preocupar-me, resistem a tudo, chegam a dar a impressão de que o vento faz um rodeio quando os vê, passa por eles de largo, com medo de se espetar nos espinhos.. Ao longo do muro, os pinheiros canários, em fila, mais desgrenhados que de costume, cumpriam o dever de quem foi colocado na linha da frente: aguentar os primeiros choques. Tudo parecia estar em ordem, podia ir preparar o meu pequreno-almoço de sumo de laranja, iogurte, chá verde e torradas com azeite e açúcar»

Viajamos pelo livro para pararmos a 5 de Janeiro quando Saramago regista a morte de Ilda Reis, mãe de sua filha Violante.

Um toque de sensibilidade, de ternura:

«Morreu a Ilda. A Ilda era a Ilda Reis, que nos tempos de rapariga começou a sua vida de trabalho como datilógrafa dos serviços administrativos dos Caminhos de Ferro, e depois, obrigando um corpo demasiadas vezes sofredor, esforçando a tenacidade de um espírito que as adversidades nunca conseguiram dobrar, se entregou à vocação que faria dela um dos mais importantes gravadores portugueses. Gozou dessa felicidade substituta que o êxito costuma vender caro, mas tinha-lhe fugido o simples contentamento de viver, As sua gravuras e as suas pinturas foram em geral dramáticas, cindidas, autorreflexivas, de expressão tendencialmente esquizofrénica (diga-se sem nenhuma certeza), como se teimasse ainda em procurar uma complementaridade para sempre perdida. Fomos casados durante vinte e seis anos. Tivemos uma filha.»

Nova paragem a 19 de Janeiro para registar a morte de Maria Judite de Carvalho:

«Chega-me aqui a notícia da morte de Maria Judite de Carvalho. Nunca li uma página sua em que não pensasse na pessoa que a tinha escrito. E creio que ela o queria assim. Que o leitor compreendesse que do outro lado não havia estado apenas uma escritora, mas sim alguém que, conhecendo como raros a arte do conto e as íntimas ressonâncias de cada palavra, usava essa arte e esse sentido musical para dizer quem era. Com obstinação, mas também com simplicidade e discreta reserva. Como Irene Lisboa, ao lado de quem a história da Literatura lhe guardará lugar, o alcance da sua voz era o espaço do coração. O ser que foi Maria Judite de Carvalho já não pertence ao mundo dos viventes, mas podemos encontrar nos seus livros tudo o que ela quis que da sua pessoa se soubesse.»

A 26 de Outubro:

Morte de José Cardoso Pires.

Tantos outros acontecimentos espalhados pelo livro que apenas referem propósitos para futura abordagem.

Que não aconteceria.

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