Os assassinos de Emmett
Chegaram sem avisar
Mascando cacos de vidro
Com suas caras de cal
(Vinicius de Moraes –
Blues para Emmett Louis Till)
Andar por uma estrada
secundária e deserta no Mississippi profundo, numa tarde feia, cinzenta e
chuvosa, é como caminhar por um cenário fantasmagórico onde, a todo o momento,
um qualquer zombie se pode atravessar no nosso caminho e acenar com os braços,
como quem nos pede ajuda…
Numa clareira à beira
da estrada, na curva de um rio ou no arvoredo lá ao fundo, um negro pode ter
sido espancado, deitado às águas ou pendurado no ramo mais alto de uma árvore…
Era bom que estivesse
a exagerar, mas não estou…
Basta ouvir ou ler as
declarações de quem viveu nestes sítios, há muitos anos atrás.
Toda a gente conhece
alguém que um dia partiu de casa para não mais voltar… E os que tiveram a sorte
de regressar vieram com as costas abertas a chicote, pernas e braços partidos e
a cara feita num bolo…
Poucas dessas
histórias viram a luz do dia.
Por vergonha ou medo
de represálias, ficaram encerradas no interior da humilhação de quem sofreu na
pele, ou na dor de quem viu partir, para sempre, os seus ente-queridos.
Mas a história que
hoje vos vou contar viu a luz do dia. Muitos desejaram que não tivesse visto,
mas viu…
Corria o ano de 1955
e Emmet Till era um rapaz de Chicago, de 14 anos e órfão de pai, que, como
quase todos os anos, tinha vindo passar uns dias de férias em Agosto a casa do
seu tio-avô Reverendo Moses Wright, no lugarejo de Money, no Mississippi.
Como todos os rapazes
da cidade que gostam de se exibir na província, Emmett era extrovertido e
gabarolas. Uma tarde, após terem andado na apanha do algodão, ele e mais uns
quantos amigos dirigiram-se a uma mercearia local (a Bryant’s Grocery)
para comprarem alguns doces e beberem refrescos. À saída, num ato de pura
exibição para os amigos, Emmett terá assobiado à empregada de serviço na
mercearia, uma tal Carolyn Bryant, de 21 anos, mulher do proprietário da loja.
Assustados com o que
viram e conhecedores das regras locais em que um negro não deve tomar a
iniciativa de se dirigir a uma mulher branca que esteja sozinha, e muito menos
enviar-lhe um piropo através de um assobio, os amigos de Emmett desataram a
fugir para as suas casas, enquanto que este se dirigiu, calmamente, para casa
do seu tio-avô, como se nada fosse.
Durante uns dias nada
se passou, mas Carolyn Bryant fizera, entretanto, queixa do miúdo ao seu marido
e este havia-lhe garantido que lhe iria dar uma lição de boas maneiras…
Quatro dias após o
sucedido, o marido, Roy Bryant, e o seu meio-irmão, J. W. Milam, irromperam
pela casa do tio-avô de Emmett e levaram o miúdo à força, dizendo que lhe
iriam dar apenas umas quantas vergastadas, para ele aprender como é que
se deve tratar uma mulher branca…
E agora vou abreviar,
porque a história está bem contada em vários sítios na Internet e quero
poupá-los aos pormenores mais horrorosos…
Dir-vos-ei, apenas,
que o perigoso Emmet Till, de 14 anos, foi levado para um celeiro em Glendora e
aí morto à pancada. O seu crânio foi esmagado, o seu rosto foi desfigurado a
murro e com o tiro de uma caçadeira, e o que restou do seu corpo foi enfiado
num saco, enrolado com arame farpado a um velho ventilador de 35 kg dum moinho
de algodão, para fazer peso, e deitado ao rio Tallahatchie, vindo a ser
descoberto por um pescador vários dias mais tarde.
O corpo do miúdo
ficou irreconhecível e só pôde ser identificado porque ainda tinha num dedo um
velho anel do seu pai, com as suas iniciais, que a mãe lhe tinha dado antes de
partir para casa do seu tio-avô.
As autoridades locais
fizeram pressão para o corpo fosse enterrado no Mississippi, o mais rapidamente
possível, mas a mãe de Emmett opôs-se e conseguiu que ele fosse transferido
para Chicago.
E mais…
Contrariando todos os
conselhos que lhe tinham sido dados, bem como todas as pressões que tinha
sofrido, mandou abrir o caixão para que todos pudessem ver bem o corpo
despedaçado e o rosto desfigurado do seu filho. Jornalistas vieram, como
vieram, também, milhares de pessoas durante quatro dias, para prestar ao rapaz
uma última homenagem.
E Emmet Till
tornou-se uma questão nacional.
Mas a história,
infelizmente, não acaba aqui.
Os dois suspeitos
foram presos e acusados.
E houve julgamento,
claro está…
E rápido…
Naqueles tempos, nos
Estados Unidos, havia sempre julgamento…
Uma palhaçada de
julgamento!
Em boa verdade, o que
é que esperavam…? De que valia a vida de um pobre rapaz de 14 anos, no
Mississippi…? Como já não bastasse o incómodo de terem de simular um
julgamento, ainda queriam que dois puros homens de raça branca fossem acusados
e aprisionados…?
Mas, desculpem-me, a
história ainda não acaba aqui…
Como nos EUA, após
ter sido julgado e ilibado, ninguém pode ser acusado duas vezes pelo
mesmo crime, quatro meses depois do julgamento os acusados venderam a sua
história à revista “Look” por quatro mil dólares (mil e quinhentos para cada um
mais mil para o advogado…) e contaram, despudoradamente e com todos os
pormenores, a forma como tinham efetuado o rapto e o assassinato do miúdo. O título do artigo – “The Shocking Story of an Approved Killing” – diz
tudo…
Mas a história ainda
não vai acabar aqui…
Após o funeral, a mãe
de Emmet Till, Mamie Bradley, enviou um telegrama ao presidente Eisenhower
solicitando a sua intervenção no sentido de repor a justiça no assassinato do
seu filho. Não obteve qualquer resposta…
50 anos mais tarde
alguns documentos do processo foram divulgados pelo FBI. Entre eles encontra-se
uma Circular da Casa Branca redigida por um tal Max Rabb, Conselheiro de
Eisenhower para as minorias, na qual se dizia que a mãe de Emmett Till era um
mero instrumento dos comunistas e que “qualquer reconhecimento perante ela
poderia ser utilizado em prol da causa comunista neste país…”.
Era necessário,
portanto, que o caso fosse esquecido o mais depressa possível, como chegou a
pedir um jornal do Mississippi, o Jackson Daily News.
Mas o caso não foi
esquecido…
William Faulkner,
pouco avezo a manifestações públicas em situações desta natureza, escreveu um
artigo violento e acusador num jornal local…
Um escritor negro do
Mississippi, Jerry W. ward Jr., dedicou-lhe um poema, “Don’t Be Fourteen in
Mississipi”, que pode ser lido na Net.
Vinicius de Moraes
dedicou-lhe, também, um poema em 1962, “Blues para Emmett Louis Till”, que
Toquinho musicou.
Para terminar em
beleza, a virgem ofendida, Carolyn Bryant, acabou por confessar em 2007 que tudo
o que havia dito em tribunal acerca do comportamento de Emmet Till era mentira,
e a única ofensa que o miúdo lhe tinha feito fora, efetivamente, o assobio…
Não só no âmbito da
população negra, mas também junto de um público branco mais esclarecido, o “affaire”
Emmet Till foi um escândalo que ajudou a perceber como era a vida e a justiça
no Sul profundo, e gerou um movimento de condenação e solidariedade de grandes
proporções, a nível nacional.
Poucos meses depois,
a 1 de Dezembro de 1955, na cidade de Montgomery, Alabama, Rosa Parks
recusou-se a ceder o seu lugar num autocarro a um branco, tendo sido presa. Com
Emmet Till ainda na memória de todos, a reação a este ato iria marcar, para
sempre, a história da luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos,
mas isso é história que vos contarei noutra oportunidade.
Como vos disse, o dia
estava feio, chuvoso e cinzento quando cheguei a Money, no Mississippi, que é
um lugarejo no meio de nenhures com meia-dúzia de casas nas redondezas.
O letreiro do
“Mississippi Freedom Trail” não deixava qualquer dúvida. Era ali que se situava
a Bryant’s Grocery e fora ali que tudo tinha começado.
Mas olhava-se à volta
e não se via nada, a não ser uma velha bomba de gasolina que eu sabia muito bem
que não era a mercearia que procurava, porque já a tinha visto em fotografias.
Bryan’s Grocery,
nem vê-la…
Paul Theroux, no seu
livro “Sul Profundo” que aqui há tempos mencionei, já nos tinha alertado.
A Bryant’s Grocery estava no topo da lista dos “Dez Mais Ameaçados
Locais Históricos do Mississippi”, por duas razões: primeiro, porque do
edifício inicial mais não restava do que algumas paredes em estado
periclitante, cobertas por ervas e arbustos, naquilo a que ele próprio chamou “a
estrutura mais fantasmagórica que vira em todas as minhas viagens pelo Sul”;
em segundo, porque talvez que aos próprios habitantes locais interessasse mais
deixar cair o que restava, para que essa má memória desaparecesse, para sempre,
das suas vidas…
Lá muito perto,
também as águas do rio Tallahatchie, para onde há sessenta e três anos atrás
fora lançado o corpo de Emmett Till, corriam feias, tristes e silenciosas, como
se também elas sentissem vergonha por se terem visto envolvidas nesta triste
história…
Este texto já vai
longo e peço-vos desculpa pelo incómodo.
Mas não vos quero
deixar sem vos convidar ao visionamento de um pequeno filme de sete minutos que
encontrei no YouTube.
Dir-me-ão que não há
muita diferença entre aquilo que lá está dito e o que vos acabei de contar…
Mas existe uma
diferença muito importante: é que lá se vê o rosto de Emmet Till.
Também eu, tal como a
sua mãe há sessenta e três anos atrás, fiz questão que vissem e fixassem bem
esse rosto…
Num Mundo em geral, e
numa Europa em particular, em que a xenofobia, a intolerância e o racismo
avançam a passos de gigante, é cada vez mais importante vermos e não
esquecermos o rosto de Emmett Till.
PS:
Como vos referi no
texto, a história de Emmett Till está profusamente documentada na Net. O livro
de Paul Theroux (págs 245 a 258) contém informações importantes, nomeadamente
no que respeita ao Relatório do FBI de 2004, que não me lembro de ter visto em
mais lado nenhum.
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