Podem Chamar-me Eurídice
Orlando da Costa
Posfácio: Orlando da
Costa
Capa: Sebastião
Rodrigues
Colecção Ficcionistas
Portugueses nº 10
Seara Nova, Lisboa,
Outubro de 1974
Sob o tremor das mãos, Cesário sentiu o gelo da mortificação. Entre
eles era como se erguesse um muro de pedra, frio, rugosos e translúcido, como
se o olvido, imóvel, e a saudade súbita, renascessem a um tempo na paisagem da
memória.
De pesar e revolta eram essas primeiras lágrimas que não teve força
paras para suster e que num repente que toldaram o olhar: quanta amargura e
convicção, quanto desânimo havia na fadiga extrema daquela voz de loucura?...
-Quem somos? Quem sou?... – respondera à voz interrogadora. – Podem
chamar-me Eurídice… Sim, Eurídice… É um nome estranho… um nome antigo… um nome
bonito, já me disseram… - e foi talvez a última vez em que relembrou o rosto
daquele velho, seu companheiro numa viagem de comboio, sorrindo com doçura e
calma. O seu olhar macerado, erguendo-se num piedoso desafio, percorreu, como
se não visse, aqueles rostos desconhecidos. Pousou os olhos em Cesário e
emudeceu.
Dentro começava a ouvir-se o tombar dos livros das estantes, o espalhar
de papéis no chão no meio do silêncio austero das habitações s assaltadas. Os
olhos de alguém fixaram-se com vulgar malícia, naquelas figuras de pedra que,
agarradas à parede, talvez parecessem dois fugitivos surpreendidos num acto
secreto. Das mãos de outro o disco silenciosos e cúmplice caiu sobre os lençóis
amachucados e, num instante, o leito desfeito transformou-se numa testemunha
suspeita e tímida.
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