sábado, 22 de dezembro de 2018

OLHAR AS CAPAS



Podem Chamar-me Eurídice

Orlando da Costa
Posfácio: Orlando da Costa
Capa: Sebastião Rodrigues
Colecção Ficcionistas Portugueses nº 10
Seara Nova, Lisboa, Outubro de 1974

Sob o tremor das mãos, Cesário sentiu o gelo da mortificação. Entre eles era como se erguesse um muro de pedra, frio, rugosos e translúcido, como se o olvido, imóvel, e a saudade súbita, renascessem a um tempo na paisagem da memória.
De pesar e revolta eram essas primeiras lágrimas que não teve força paras para suster e que num repente que toldaram o olhar: quanta amargura e convicção, quanto desânimo havia na fadiga extrema daquela voz de loucura?...
-Quem somos? Quem sou?... – respondera à voz interrogadora. – Podem chamar-me Eurídice… Sim, Eurídice… É um nome estranho… um nome antigo… um nome bonito, já me disseram… - e foi talvez a última vez em que relembrou o rosto daquele velho, seu companheiro numa viagem de comboio, sorrindo com doçura e calma. O seu olhar macerado, erguendo-se num piedoso desafio, percorreu, como se não visse, aqueles rostos desconhecidos. Pousou os olhos em Cesário e emudeceu.
Dentro começava a ouvir-se o tombar dos livros das estantes, o espalhar de papéis no chão no meio do silêncio austero das habitações s assaltadas. Os olhos de alguém fixaram-se com vulgar malícia, naquelas figuras de pedra que, agarradas à parede, talvez parecessem dois fugitivos surpreendidos num acto secreto. Das mãos de outro o disco silenciosos e cúmplice caiu sobre os lençóis amachucados e, num instante, o leito desfeito transformou-se numa testemunha suspeita e tímida.

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