A Mãe de um Rio
Agustina Bessa-Luís
Babel, Lisboa,
Outubro de 2014
Antigamente, sim, antigamente, a terra tinha a forma quadrada e um rio
de fogo corria na superfície. Não havia aves nem plantas, as águas estavam nos
ares como nevoeiros cor de ferro e os ventos não as tinham distribuído ainda
pelos quatro cantos agudos da Terra. Onde estava o peixe minúsculo de ventre
negro, ou as bonitas serpentes de escamas verdes? Não existia o trigo nem a mão
humana, nem mesmo o sono ou a dificuldade, que foi o segundo grito da criação.
Passamos hoje por um caminho que tem nele marcado outras pegadas, e ocorrem-nos
as histórias doutras idades. Por deserto que esteja o campo e frio o sol, o
tempo está presente e nos penetra de sabedoria e fortaleza. A única solidão é
aquela que não tem passado.
Se hoje percorrermos um velho lugar inóspito, como a serra da Nave, mil
lembranças nos acodem, e cada pedra desconhecida, cada ramo de acónito e de
malvaísco nos apresenta uma parada de vidas, de funções, de razões e de
espiritualidade. Temos que morrer um dia, mas que deixemos no solo húmido a
sombra da nossa obediência mortal.
Mas comecemos a história da mãe de um rio.
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