segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

SONNY BOY WILLIAMSON



“He is gone, Sonny Boy is dead and gone
He is gone, Sonny Boy is dead and gone
Can’t nobody play harp the way he done
He is dead, he’s dead, I ain’t crying but I’m sad
He is dead, he’s dead, I ain’t crying but I’m sad
He made you feel good when he played and me feel sad
I’m so glad, I’m so glad, that is music is going on
I’m so glad, I’m so glad thar is music is going on
But I’m so sad, so sad, the greatest one is gone”
(Sonny Boy Williamson - Jack Bruce e Paul Jones)

Aí pelos meus 15/16 anos, quando não tinha aulas passava as tardes em casa do meu amigo João Pedro a jogar às cartas ou aos matraquilhos e a ouvir música.
Por vezes apareciam por lá outros colegas dele da Escola Alemã.  Lembro-me do Eduardo, do Guimarães e até o Herman José por lá passou…

Por essa altura, em que a nossa Religião era a chamada música popular de expressão britânica e a nossa Igreja o “Em Órbita”, o meu amigo João tinha em sua casa algumas preciosidades (Simon & Garfunkel, Tim Buckley,  Leonard Cohen, Tim Hardin, Donovan, Fairport Convention…) que tornavam essas tardes de lazer uma verdadeira delícia.

Mas quando os amigalhaços do João lá estavam, a música era outra e, quase sempre, bastante mais “pesada”… Ten Years After, Canned Heat, Led Zeppelin e outras coisas do mesmo estilo que, na sua generalidade, eu já pouco apreciava.
No final dos anos 60 coincidiram por lá dois discos que eram ouvidos em permanência: “Super Session”, de Mike Bloomfield, Steve Stills e Al Kooper e “The Life Adventures of Mike Bloomfield & Al Kooper”. Que estes dois últimos não eram flor que se cheirasse vim eu a saber mais tarde, porque foram precisamente eles os comparsas de Bob Dylan naquela célebre noite de Newport em Julho de 1965, de que ainda no outro dia vos falei.

Como vos disse, as músicas desses dois discos eram ouvidas em sessões contínuas, sobretudo “Season of the Witch”, do primeiro, que durava mais de 10 minutos e cujos solos de guitarra de Mike Bloomfield e de orgão de Al Kooper me deixavam os cabelos em pé (na altura tinha muitos…). Se “Season” já não fazia parte das minhas músicas favoritas do Donovan, esta versão era pura e simplesmente intragável para os meus ouvidos de então.

Mas o segundo disco tinha uma música com uma batida muito agradável, que se chamava “Sonny Boy Williamson”, de que conseguia gostar.  O problema era que a tal batida era de muito curta duração em comparação com os intermináveis solos a que aqueles dois, mais o Carlinhos Santana, invariavelmente se dedicavam. Em todo o caso, bem melhor do que a versão original de Paul Jones, que só vim a conhecer alguns anos mais tarde.




Durante tardes a fio aqueles “Fritzs” da Escola Alemã estendiam-se ao comprido no sofá, fumavam uma reles imitação de charro com erva plantada na “marquise” das traseiras e fingiam que partiam numa longa viagem…! E por cada três “Season of the Witch” eu só tinha direito a um “Sonny Boy Williamson”, injustiça que aguentei com grande espírito de compreensão e de camaradagem. E quanto a charros, estou como o outro: fumei mas não inalei…!

Dava para perceber que era um músico, mas eu estava então longe de saber quem era esse tal de Sonny Boy Williamson.

Naquele tempo não havia Net nem livros à mão de semear. O stock das discotecas era muito limitado, e o acesso à informação demorado e complicado. Já se podia mandar vir livros e discos do estrangeiro (a saudosa “Tandy’s Records”…!) mas demorava uma eternidade e, que diabo, conhecer Sonny Boy Williamson não era, para mim, uma prioridade…!

E só muitos anos mais tarde vim a saber quem ele era. E mais: que não havia apenas um, mas dois Sonny Boys Williamsons…

O primeiro, John Lee Williamson de seu nome verdadeiro, era oriundo do Tennessee, fez quase toda a sua carreira em Chicago e era um exímio tocador de harmónica. Morreu assassinado em 1948 e ficou na História por ser o autor de “Good Morning Little School Girl”, que muito anos mais tarde chegaria a ser gravada pelos Grateful Dead e pelos Ten Years After.

O segundo rapinou o nome ao primeiro ainda em vida dele, e era um malandro de Glendora, no Mississippi, de nome Alex “Rice” Miller que aprendeu a tocar harmónica muito cedo e também muito cedo se meteu à estrada, tocando onde calhava e com quem calhava (chegou a tocar com Robert Johnson, Big Joe Williams e Elmore James …..), inicialmente com o nome de “Little Boy Blue”.


A partir de 1941 teve um programa de rádio em Helena, no Arkansas, onde se começou a apresentar sob o nome de Sonny Boy Williamson. No final dessa década viveu em West Memphis com a irmã e o cunhado, o célebre Howlin’ Wolf, que depois acompanhou para Chicago em meados dos anos 50, vindo a alcançar aí grande popularidade como vocalista e tocador de harmónica, junto de uma população maioritariamente negra.  

Mas o seu pico de celebridade teve-o nos anos 60, quando passou largas temporadas na Europa e se tornou, juntamente com Muddy Waters, B. B. King, John Lee Hooker e tantos outros, um dos grandes ídolos da geração de músicos ingleses que haveria de estar na origem do Rock-Blues e que incluía nomes como Eric Clapton, John Mayall, Steve Winwood, Eric Burdon, Jack Bruce, Ginger Baker,  Long John Baldry, Jimmy Page, Jeff Beck, Georgie Fame, Chris Farlowe, Manfred Mann, Paul Jones ou Alexis Korner, para já não falar em Brian Jones, Keith Richards e Mick Jagger, na altura também totalmente devotados ao Blues (como se sabe, o próprio nome “Rolling Stones” foi retirado de uma música de Muddy Waters).

Essa gente veio a estar na origem de bandas famosas (Yardbirds, Spencer Davis Group, Cream, The Blues Incorported, Manfred Mann, The Bluesbreakers, Rolling Stones, Led Zeppelin, etc). E essas bandas não só divulgavam, através de novas interpretações, os velhos blues do antigamente, como convidavam esses bluesmen para tocarem com elas e, muitas vezes, abrirem os concertos onde eram a principal atracção. Ainda hoje Bill Wyman afirma (vd. documentário “The Life of Riley”, sobre B. B. King, que tem vindo a passar nos Telecines) que a tournée que os Stones fizeram com B. B. em 1969 terá sido a melhor de sempre da banda.

Essas bandas britânicas tiveram, por outro lado, um sucesso muito grande no outro lado do Atlântico junto de um público jovem branco (a british invasion não foram apenas os Beatles…), que em grande parte desconhecia a existência dessa música e desses músicos negros.


No documentário de Richard Pearce “The Road to Memphis” (desculpem-me o excesso de citações, mas não posso estar aqui a dar palpites sem citar as minhas fontes…), é comovente ver B.B. King a contar como ele e a sua banda, que raramente tocavam para brancos,  chegaram ao Fillmore (East ou West, já não me lembro…) para dar um espetáculo e viram bichas enormes de malta branca e ficaram a olhar uns para os outros, convencidos que se tinham enganado no local…  


A divida desses velhos bluesmen para com esta geração inglesa é enorme, tal como o próprio B. B. King, uma vez mais, o reconheceu noutra ocasião:


“Se não tivessem sido os músicos britânicos, muitos de nós, músicos negros da América, continuaríamos a passar muito mal, tal como passávamos antes. Graças a eles abriram-se portas que nunca imaginei que se abrissem na minha vida” (B. B. King in documentário “Red, White and Blues”, de Mike Figgis)

Tudo isto faz parte da História do Blues e Sony Boy cavalgou essa onda de popularidade.

Gravou com os Yardbirds e com os Animals, fez diversas “tournées” pela Europa com os “American Folk Blues Festival”, que era um conjunto de músicos de blues, folk blues e rhythm & blues que punham em cena a sua música em espetáculos ao vivo.
Sonny Boy Williamson II, como agora é conhecido, era um figurão (ou, se preferirem, a “colorfull character”, como lhe chama a placa do “Blues Trail” na sua terra natal…) e pode ser visto  no YouTube, apresentando-se em palco impecavelmente vestido, de chapéu de coco na cabeça e chapéu de chuva na mão, para além da mala onde transportava todos os seus instrumentos. Era um verdadeiro “one man show” e uma das suas especialidades era engolir meia harmónica e tocá-la assim mesmo, sem a ajuda das mãos.

Mas era conflituoso e com tendência para se meter em alhadas, o que terá apressado o seu regresso à Pátria em finais de 1964.  Retomou em Helena, no Arkansas, ao seu antigo trabalho de animador radiofónico, para pouco depois, em 1965, morrer de um ataque cardíaco em pleno sono.

Em Helena não me lembro de ter visto nada que guardasse a sua memória.    
Mas Glendora, sua terra natal, não se esqueceu dele… Acolhe o visitante com um bonito cartaz de boas-vindas em seu nome e dedica um pequeno museu à sua memória, paredes meias com o de Emmett Till.  Bem pobre e feinho, por sinal, como feio é quase tudo o que vi em Glendora, um dos lugares mais miseráveis que visitei em todo o Mississippi.


Saí de Glendora  em direção a Money, localidade onde foi barbaramente assassinado Emmett Till, como vos contarei no próximo texto. Mas tive saudades do meu amigo João e dos nossos  tempos de adolescência, e também muita pena de não ter no carro nem  “Season of the Witch” nem “Sonny Boy Williamson”, que naquele preciso momento me teriam sabido muito bem ir a ouvir pelo caminho…

PS:

Não o disse na altura própria e agora não quero sobrecarregar o texto, mas “Sonny Boy Williamson” foi uma homenagem ao músico por ocasião da sua morte, composta por Jack Bruce e Paul Jones e interpretada por este último em 1967, como B-Side de “I’ve Been a Bad, Bad Boy”, música do filme “Privilege”, de Peter Watkins.
Paul Jones passa, aliás, por ser o maior “otário” da História da Música Rock, porque parece ter recusado ser o vocalista da banda que viria a dar origem aos “Stones”. Mick Jagger agradeceu…

PS2:

Não obstante o meu tom jocoso, Mike Bloomfield e Al Kooper foram figuras muito importantes do blues revival americano dos anos 60/70, na esteia dos seus colegas ingleses. De Kooper guardo um excelente disco na minha coleção: “Easy Does It”, que tem a melhor cover que conheço de “I Got a Woman”, do Ray Charles.   

Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

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