sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

QUANDO ME FALTA A LEITURA...


De Faro, a 18 de Abril de 1953, António Ramos Rosa escreve a Jorge de Sena:

Alguma coisa que está longe de ser modéstia e é ancestral timidez, comodíssima, leva-me a preferir o gosto lavado do leitor obscuro que muito tempo fui, e afinal continuo a ser, às vaidades do nome impresso de que já me comecei a aborrecer. Assim é que uma contradição se arraiga em mim entre o suposto crítico que fui levado a ser por imposições amigas, o suposto entendedor de poesia que gostaria de ser e só por cintilações intermitentes possivelmente sou, e aquele comodista e sequioso leitor que incorrigivelmente continuo a ser e para quem certos nomes funcionam perfeitamente como deuses, como outrora na minha infância funcionavam as fotografias dos jogadores e corredores que eu recordava dos jornais e com os quais organizava desafios e corridas, estas, por sinal, com um capacho de abanar… Ora, parece, as tentativas para que eu funcione como um deus, não têm dado qualquer resultado até aqui… A felicidade para mim, ou pelo menos uma forma dela, consistiria em possuir uma riquíssima biblioteca e passar os meus dias a ler tranquilamente o melhor que se publicasse no planeta… Eu hoje já não sei viver sem esse estímulo e a cor do dia, uma certa espontaneidade, um certo à vontade, a graça, podem ser produzidos por um verso, um período de filosofia, um apontamento sociológico, um ensaio sobre poesia. Quando me falta a leitura, falta-me tudo. Talvez porque tudo me tem faltado e eu já não tenho coragem senão para pensar em substituição O que é terrível, não acha?).

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