Mais logo,
despedimo-nos de mais um ano velho.
A Sophia de Mello
Breyner Andresen não sabia por que as pessoas celebravam a passagem do ano. O ano está sempre a mudar, dizia.
Novo ano.
O que for será, como
naquela velha canção da Doris Day.
Ou a Criação do Mundo que é um lindíssimo
poema da Maria do Rosário Pedreira:
«Olhou as mãos em concha e viu arredondar-se
um sonho dentro delas – um mundo
que ninguém podia adivinhar, pois dele
fariam também parte os magos e os profetas.
Abriu-as devagar e deixou cair as trevas como sementes,
para que então servissem unicamente de sombras
e prolongassem a memória das coisas por vir. Foi assim
que inventou a luz e separou um dia do seguinte.
Depois afastou o céu daquilo que viria a ser o mar,
como quem divide um lenço azul em dois e limpa
as lágrimas apenas a metade. No meio, deixou que
crescesse tudo quanto do chão quisesse escapar-se
para traçar a primeira geografia dos caminhos. E assim
descobriu a cor e encheu a sua paleta de animais
que rasgariam os céus, cruzariam os oceanos e
resolveriam as entranhas da terra na estação
das chuvas. Por fim, semeou pequenas clareiras
nas florestas, pedras nas vertentes das cordilheiras,
cristais de neve no contorno dos lagos, estrelas cadentes
na vizinhança do desespero e rios serpenteantes
entre as searas louras, mordidas por um sol que lhe caiu
quase sem querer dos dedos, mas lhes aproveitou o calor
E, apesar da alegria que experimentou, sentiu que o seu
mundo era tão frágil que, se desviasse os olhos, tudo acabaria
por regressar ao pó, às trevas e ao verbo. Só por isso criou alguém
que também o visse e lhe dissesse todos os dias como era belo.»
Maria do Rosário Pedreira em O Canto doVento nos Ciprestes
um sonho dentro delas – um mundo
que ninguém podia adivinhar, pois dele
fariam também parte os magos e os profetas.
Abriu-as devagar e deixou cair as trevas como sementes,
para que então servissem unicamente de sombras
e prolongassem a memória das coisas por vir. Foi assim
que inventou a luz e separou um dia do seguinte.
Depois afastou o céu daquilo que viria a ser o mar,
como quem divide um lenço azul em dois e limpa
as lágrimas apenas a metade. No meio, deixou que
crescesse tudo quanto do chão quisesse escapar-se
para traçar a primeira geografia dos caminhos. E assim
descobriu a cor e encheu a sua paleta de animais
que rasgariam os céus, cruzariam os oceanos e
resolveriam as entranhas da terra na estação
das chuvas. Por fim, semeou pequenas clareiras
nas florestas, pedras nas vertentes das cordilheiras,
cristais de neve no contorno dos lagos, estrelas cadentes
na vizinhança do desespero e rios serpenteantes
entre as searas louras, mordidas por um sol que lhe caiu
quase sem querer dos dedos, mas lhes aproveitou o calor
E, apesar da alegria que experimentou, sentiu que o seu
mundo era tão frágil que, se desviasse os olhos, tudo acabaria
por regressar ao pó, às trevas e ao verbo. Só por isso criou alguém
que também o visse e lhe dissesse todos os dias como era belo.»
Maria do Rosário Pedreira em O Canto doVento nos Ciprestes
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