domingo, 6 de maio de 2018

OLHAR AS CAPAS


A Longa Viagem

Jorge Semprun
Tradução: João Gaspar Simões
Capa: Sebastião Rodrigues
Colecção Encontro nº 34
Editora Arcádia, Lisboa s/d

Há este amontoado de corpos no vagão, esta dor lancinante no joelho direito. Os dias, as noites. Num esforço tento contar os dias, tento contar as noites. Talvez isso me ajude a ver claro. Quatro dias, cinco noites. Mas devo ter contado mal ou então há dias que se transmudaram em noites. Tenho noites a mais; noites para dar e vender. Uma manhã, de facto, foi numa manhã que esta viagem principiou. Esse dia inteiro. Depois uma noite. Alço o polegar na penumbra do vagão. O polegar, por essa noite. E depois outro dia. Estávamos ainda em França e o comboio mal se havia movido. Ouvíamos vozes, por vezes, de ferroviários, para além das botas das sentinelas. Esquece essa noite, foi o desespero. Outra noite. Soergo outro dedo na penumbra. Um terceiro dia. Outra noite. Quatro dias, portanto, e três noites. Três dedos da minha mão direita. E o dia em que estamos. Quatro dias, portanto, e três noites. Caminhamos para a quarta noite, o quinto dia. Para a quinta noite, o sexto dia. Mas seremos nós quem avança? Nós estamos imóveis, amontoados uns em cima dos outros, a noite é que avança, a quarta noite, para os nossos futuros cadáveres imóveis. Dá-me vontade de rir: realmente, via ser a Noite dos Búlgaros.
- Não te canses, diz o camarada.

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