Um homem deve ler de tudo, um pouco ou o que puder, não se lhe exija
mais do que tanto, vista a curteza das vidas e a prolixidade do mundo. Começará
por aqueles títulos que a ninguém deveriam escapar, os livros de estudo, assim
vulgarmente chamados, como se todos o não fossem, e esse catálogo será variável
consoante a fonte do conhecimento aonde se vai beber e a autoridade que lhe
vigia o caudal, neste caso de Ricardo Reis, aluno que foi de jesuítas, podemos
fazer uma ideia aproximada, mesmo sendo os nossos mestres tão diferentes, os de
ontem e os de hoje. Depois virão as inclinações da mocidade, os autores de
cabeceira, os apaixonamentos temporários, os Werther para o suicídio ou para
fugir dele, as graves leituras da adultidade, chegando a uma certa altura da
vida já todos, mais ou menos, lemos as mesmas coisas, embora o primeiro ponto
de partida nunca venha a perder a sua influência, com aquela importantíssima e
geral vantagem que têm os vivos, vivos por enquanto, de poderem ler o que
outros, por antes de tempo mortos, não chegaram a conhecer. Para dar só um
exemplo, aí temos o Alberto Caeiro, coitado, que, tendo morrido em mil
novecentos e quinze, não leu o Nome de Guerra, Deus saberá a falta que lhe fez,
e a Fernando Pessoa, e a Ricardo Reis, que também já não será deste mundo
quando o Almada Negreiros publicar a sua história. Por um pouco veríamos aqui
repetida a graciosa aventura do senhor de La Palice, o tal que um quarto de
hora antes de morrer ainda estava vivo, isto diriam os humoristas expeditos,
que nunca pararam um minuto para pensar na tristeza que é já não estar vivo um
quarto de hora depois. Adiante. Provará pois o homem de tudo, Conspiração
sejas, e não lhe fará mal nenhum descer uma vez por outra das altitudes
rarefeitas em que costuma abonar-se, para ver como se fabrica o pensar comum,
como alimenta ele o comum pensar, que é disso que vivem as gentes no seu
quotidiano, não de Cícero ou Espinosa. Tanto mais, ah, tanto mais que há uma
recomendação de Coimbra, um insistente conselho, Leia a Conspiração, meu amigo,
é boa doutrina a que lá vem, as fraquezas da forma e do enredo desculpa-as a
bondade da mensagem, e Coimbra sabe o que diz, cidade sobre todas doutora,
densa de licenciados. Ricardo Reis logo no dia seguinte foi comprar o livrinho,
levou-o para o quarto, aí o desembrulhou, sigilosamente, é que nem todas as
clandestinidades são o que parecem, às vezes não passam de envergonhar-se uma
pessoa do que vai fazer, gozos secretos, dedo no nariz, rapação de caspa, não
será menos censurável esta capa que nos mostra uma mulher de gabardina e boina,
descendo uma rua, ao lado duma prisão, como se percebe logo pela janela
gradeada e pela guarita da sentinela, ali postas para não haver dúvidas sobre o
que espera conspiradores.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
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