Tenho de confessar que A Paleta foi excelentemente
recebida. Além da generosidade das referências e do espontâneo interesse duma
grande editorial espanhola, mereceu em 62, por unanimidade, o Grande Prémio de
Ensaio da Sociedade Portuguesa de Escritores.Os prémios não se tinham ainda
banalizado. E tratava-se então de uma promoção exclusivamente cultural. Como
acontecia também com o Prémio Camilo Castelo Branco (obras de ficção), a cujo
júri quase sempre pertenci. Digo-o sem desprimor para os tantos prémios de
hoje. Não se leia mais do que aqui escrevo. Mas era outra a canção.
Indiscutivelmente.
Enchia-se-nos a casa de amigos. Velhos e novos amigos. Com muita parra
à mistura, é bem verdade. Não há uvas sem parras. Juntos projectámos e
organizámos, na mesma sala onde lavro este documento para a posteridade (que
não há), muita coisa que esforçadamente ergueu o punho contra a barbárie
fascista. Se esta sala falasse, nunca mais se calava.
As conferências, por exemplo, do Grémio Alentejano, que assim se
chamava, em 43, a Casa do Alentejo, foram aqui planeadas. Uma série de palestras
ilustradas com recitais de poesia e música (de música, estou dizendo),
destinadas a um vasto público e aqui pensadas por amigos vários, entre os quais
me ocorrem de momento a Francine Benoit, o Sidónio Muralha, o Alexandre Cabral,
de cabelos à cão-d'água, risca ao meio, camisa azul-da-prússia e gravata
amarela, jogava râguebi, bem bom. Como era então difícil conseguir uma sala! E
alugar um piano?
A primeira conferência, do Bento de Jesus
Caraça - «Algumas reflexões sobre Arte» - sala cheia, decorreu sem problemas de maior. Mas, na
segunda (e última), já os mastins tinham acordado, tudo mudou de figura. Sala
ainda mais cheia. Falava o Lopes Graça sobre música medieval e punha um novo
disco para documentar o que dizia, quando, no silêncio momentâneo, se ouviu,
lá das últimas filas, uma voz avinhada, toda escorropichante: «Vira o disco e
toca o mesmo!»
Era o sinal. Os mercenários atiraram-se ao público como feras
esfaimadas. Cães à solta. Confusão. As coisas não foram, no entanto, assim tão
fáceis para eles. Nós tínhamos, a toda a volta da sala, um cordão de operários
da Carris, trazidos pelo Cabral, me parece, que trabalhava na empresa. De
livre vontade ali estavam para o que desse e viesse. E o que veio foi uma
sessão de brutal pancadaria. Brutal, não exagero. Os mastins excitavam-se a si
mesmos, trepando a cadeiras para berrar: «Quem é que disse morra a Pátria?» E,
dessas mesmas cadeiras se servindo como camartelos, berravam: «Viva a Pátria!
Viva Salazar!» Os corpos engalfinhavam-se nas salas, rebolavam pelas escadas
do Grémio Alentejano abaixo até à rua e, na rua, até à esquadra do Rossio.
Apesar da indignação que tudo isto provocava, ainda nos mais calmos, Caraça
maravilhava-se: como era possível haver ainda gente pronta a bater-se, e de tal
modo, em defesa da cultura! Pedra branca para mim: foi no fim dessa refrega que
conheci o Ludgero Pinto Basto, recém-chegado da prisão, em Angra.
Mário Dionísio em Autobiografia
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