quarta-feira, 9 de maio de 2018

SE ME DEIXO CAIR NA ENGRENAGEM, LIXO-ME...


Estamos a 13 de Fevereiro de 1974 e Mário-Henrique Leiria escreve carta para a sua «Beluska distante».

Uma gripe atirou-o às malvas, a mãe com uma recaída, Jovília de cama, também, com gripe. A humidade de Carcavelos dá-lhe cabo do reumatismo.

«Não sei, menina, realmente não sei como ainda tenho paciência para aturar estas velhas e isto tudo.
Realmente eu sou um animal solitário por excelência, gosto mesmo de estar só, não aguento este constante palrar das velhas e o ladrar do Vodka. É bom que saibas que é assim mesmo, uma espécie de lobo velho que nem sequer já acredita na alcateia.
(…)
De literatura e outras tretas, informo-te que a semana passada passei para best-seller nº 1. Claro que isto não quer dizer nada, já que eu não acredito mesmo em best-sellers. Bem, mas para a editora quer, é evidente. Tanto que, logo à noite, vêm buscar-me para ir jantar com os editores. Não me aguento nas pernas com a gripe e o reumatismo, mas vou. Já viste a merda em que as pessoas me metem? Pois aí, até sei o que querem: 2º edições dos dois livros e pedido para um terceiro, já me avisaram por carta. Estão enganados. Se me deixo cair na engrenagem, lixo-me. Não senhora. Não tenho nada a ver com isto e já o disse, veio cá um jornalista da VIDA MUNDIAL, brasileiro calcula tu, e simpatiquérrimo. Vai nas páginas centrais, com fotos e tudo. Desta vez estoirei e disse mesmo que quero que vão todos para a puta que os pariu. Também apareceu uma moça judia brasileira correspondente da MANCHETE. De facto o humor negro e a crueldade risonhamente amarga é bem uma característica semita. Não estou certo do que disse, mas creio que vai sair uma bronca daquelas, já que percebemos a linguagem um do outro à primeira palavra, ao som de discos de Israel.


Legenda: fotografia de Luís Severo de ume entrevista publicada em O Diário, 28 de Dezembro de 1978

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