Como eu mesmo sempre fiz, responderá Ricardo Reis, e Fernando Pessoa
dirá, Só estando morto assistimos, e nem disso sequer podemos estar certos,
morto sou eu e vagueio por aí, paro nas esquinas, se fossem capazes de ver-me,
raros são, também pensariam que não faço mais que ver passar, não dão por mim
se lhes tocar, se alguém cair não o posso levantar, e contudo eu não me sinto
como se apenas assistisse, ou, se realmente assisto, não sei o que em mim
assiste, todos os meus actos, todas as minhas palavras, continuam vivos,
avançam para além da esquina a que me encosto, vejo-os que partem, deste lugar
donde não posso sair, vejo-os, actos e palavras, e não os posso emendar, se
foram expressões de um erro, explicar, resumir num acto só e numa palavra única
que tudo exprimissem de mim, ainda que fosse para pôr uma negação no lugar duma
dúvida, uma escuridão no lugar da penumbra, um não no lugar de um sim, ambos
com o mesmo significado, e a pior de tudo talvez nem sejam as palavras ditas e
os actos praticados, o pior, porque é irremediável definitivamente, é o gesto
que não fiz, a palavra que não disse, aquilo que teria dado sentido ao feito e
ao dito, Se um morto se inquieta tanto, a morte não é sossego, Não há sossego
no mundo, nem para os mortos nem para os vivos, Então onde está a diferença
entre uns e outros, A diferença é uma só, os vivos ainda têm tempo, mas o mesmo
tempo lho vai acabando, para dizerem a palavra, para fazerem o gesto, Que
gesto, que palavra, Não sei, morre-se de a não ter dito, morre-se de não o ter
feito, é disso que se morre, não de doença, e é por isso que a um morto custa
tanto aceitar a sua morte, Meu caro Fernando Pessoa, você treslê, Meu caro
Ricardo Reis, eu já nem leio. Duas vezes improvável, esta conversação fica
registada como se tivesse acontecido, não havia outra maneira de torná-la
plausível.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
Legenda: pintura de
Edvard Munch
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