Marketing
Fernando Namora
Capa: José Cãndido
Livraria Bertrand,
Lisboa, Outubro de 1978
Marketing
Aqui a meu
lado o bom cidadão
escolheu
Sagres
que é
tudo tudo cerveja
a pausa que
refresca
a longa pausa
de um longo cigarro King Size.
atenção
ao marketing.
Eu não gosto de
cerveja
mas tenho de
gostar que os outros gostem de cerveja
sobretudo da
Sagres
para não
contrariar os fabricantes de cerveja.
atenção ao marketing.
Ninguém contraria
os fabricantes de cerveja
ninguém contraria
os fabricantes do Opel e da Super Silver
nem os fabricantes
de alcatifas para panaceias
nem as panaceias
nem os códigos e os édredons macios
nem as mensagens
de natal dos estadistas
nem os negociantes
de armas da Suíça
nem o homem de
capa negra que virou as costas ao Palmolive.
Está tudo perfeito
e deito-me no conforto de um Lusospuma
a ver as
procissões passar mesmo sem anjos mesmo sem anjos
que são agora
selvagens e voam numa Harley.
Deito-me e obedeço
aos fabricantes do Clarim
que é uma alta
onda ou uma onda alta
sem esquecer as
fitas do John Waine e a chama viva do Butagás
e se calhar sentir
fome terei toda a frescura serrana
numa fatia de pão.
atenção ao marketing.
Vitonizo-me
desodorizo-me atravesso as ruas nas passagens dos peões
louvo quem me
dizem para louvar e desconfio dos negros americanos
e dos blousons
noirs que não usam Lux
e não compram um
frigorífico a prestações
e com o meu escudo
invisível
protejo-me dos
vírus subversivos
sou um bom
cidadão sou um bom cidadão
obedeço ao
marketing à General Motors e ao Pentágono.
Dantes
tinha problemas era o odor corporal
e eu não o
sabia até me higienizar seis vezes ao dia com o sabonete das
estrelas
e as paradas marciais e os 5-3 do Eusébio à Coreia
e as paradas marciais e os 5-3 do Eusébio à Coreia
e o talco Cadum
que ama demoradamente roucamente tepidamente
os corpos que
merecem ser amados...
Obedeço ao
marketing não contrario.
Ninguém contraria
os fabricantes das ideias e os fabricantes do Fula
que é o da cor do
sol
ninguém pisa os
riscos brancos do tráfego
nem chama os
bombeiros sem concorrer ao sorteio
concorro
concorro e vejo nos sinaleiros o pai natal vestido de Scotchgard
ninguém sai do
emprego antes de assinar o ponto a horas fixas
e gastar o
dinheiro da semana sábado à tarde
no Dardo
que é tudo a prestações e é mesmo em frente da Música no Coração.
Fazendo Portugal
mais alegre com o folclore da TV e a tinta Robbialac
não contrario
obedeço obedeço e meto os meninos na cama
quando me dizem
vamos dormir.
atenção ao marketing.
Sagres é uma boa
cerveja
e eu acabarei por
gostar da Sagres
como gosto do
Rexina.
Sagres é a pausa
que refresca e tem vitaminas
todas as bebidas
da televisão têm vitaminas
mesmo as do
programa literário que é detergente
e eu uso-as e sou
um cidadão perfeito
e até já consigo
adormecer com hipnóticos
depois de tomar o
Tofa descafeinado
e no Verão visto
calções de banho de fibras sintéticas
para me banhar na
Torralta
cidadão perfeito
perfeitamente bronzeado com o Ambre Solaire.
Também vou arear
as caçarolas e os nervos e os miolos
com um pó azul de
que não me lembra o nome
não me lembra mas
a culpa já não é minha
porque na mesma
noite
massajado com Aqua
Velva
fiz a barba com
Gillette, e Schick e Nacet
e fui não sei
aonde sempre com a mesma lâmina
e oito dias depois
(eu era actor ou toureiro?)
a lâmina ainda me
escanhoou mais uma barba
antes de eu descer
no aeroporto
onde me esperava
um agente do marketing.
Os produtores
viram-me à descida do avião
primeiro julgaram
que era o filho da Sophia Loren
ou o Onassis
mas era eu
e gostaram da
minha barba bem feita.
(Da barba bem
feita
ou do casaco
Dralon que não se amarrotara
durante a viagem
da Polinésia para Lisboa?)
Confesso que já
não me lembra mas a culpa não é minha
pois na mesma
noite
fui o homem de não
sei quê que marca o rumo
por vestir regras
ou camisas ou calças que não enrugam
e fartei-me de
assistir a discursos e a inaugurações
e fartei-me de
comer chocolates Regina e pescada congelada
e de lavar a roupa
com Ajax e com o Rino
e de me banhar com
Omo ou seja uma onda de brancura
e fiz-me mecânico
de automóveis
só para que o
cavaleiro da armadura branca
me tocasse com a
sua lança mágica
e me pusesse
branco branco branco
três vezes branco
como as páginas do Reader’s
de cérebro
irrepreensivelmente lexivizado
pelos locutores da
televisão pela oratória dos políticos
e passado a ferro
com um ferro eléctrico automático
que talvez fosse –
ou não? – uma enceradora Philips.
Tudo coisas
admiráveis e desesperadamente necessárias
que eu devo ao
marketing
e me são
cozinhadas num abrir e fechar de olhos
nas palavras de
pressão
de todo o bom
cidadão.
E no intervalo
bebi café puro o do gostinho especial
Sical Sical que é
um luxo verdadeiro
Por pouco dinheiro.
Vitonizado
esterilizado comprando e concorrendo
esqueci-me de
amar do amor das árvores e do rio
esqueci-me de
mim tão entretido estava a admirar a Lisnave
esqueci-me do rio
e dos barcos
e da saudade de
pedra do Fernando Pessoa
e esqueci-me de
sonhar que era marinheiro.
Concorra
concorra foi isso que não reparei
que uma rapariga
cortou as veias
talves fosse com
uma Diplomatic
que tem o fio e o
silvo de uma espada a degolar avestruzes.
No programa só
havia bombeiros
nem uma rapariga a
cortar as veias (não era a Caprília)
nem o rio nem o
amor nem a raiva da Venezuela.
Se mágoa sentia
era a de ter esquecido
dar murros no
espião da Missão Impossível
(atenção ao
marketing)
e já não saí de
casa para ver o rio
só pelo gosto de
me aquecer com um Ignis.
E na mesma noite
noite boa noite branca
fumei Estoril
Valetes Kayakes e bebi Compal
depois da Salus e
da Schweppes
fumei quilómetros
e quilómetros de prazer
quilómetros e mais
quilómetros – há um Ford no meu futuro –
mais facturas mais
fomes mais prazer
e agora já não sei
qual dos cigarros com filtro
me soube melhor.
Foram todos foram
todos de certeza
pois se me dizem
que preciso de Omo
do
Ajax do Estoril do Dralon
do esquentador e
das alcatifas sem nódoas
não me preocupo
não te preocupes
o Meraklon não
preocupa ninguém
mando para o diabo
o amor e o rio e a rapariga que cortou as veias
não me preocupo
não me preocupo
digo pois pois ao
Jota Pimenta e ao Escort
e hei-de virar-me
do avesso para os possuir.
Os corpos que
merecem ser amados merecem o talco Cadum.
Numa onda de
brancura obedeço ao marketing. Sou um bom cidadão.
E na mesma noite
vi umas bombas que
caíam muito ao longe
numa lonjura mais
longe que a Lua
onde as pessoas
podiam estar quietas a fumar Marialvas
e a lavarem-se com
Rino que lava lava lava
lava três vezes
mais lava ou mata que se farta
e me ajuda a ser
bom cidadão.
atenção ao marketing.
Vi uns homens a
inaugurarem estátuas
e vi fardas e
paradas e conferências
e crianças a
sorrir
para os homens
sorridentes que inauguravam estátuas
e vi homens que
falavam e pensavam por mim
a escolherem por
mim o bom e o mau
de modo a que eu
não possa ser tentado
a confundir o mau
com o bom ou vice-versa ou vice-versa.
Deitado no conforto
de um Lusospuma
vi os porcalhões
dos hippies nas ruas de Estocolmo
bem
longe nas ruas de Estocolmo
mesmo a pedirem
uns safanões
dos homens que
acariciam crianças
e têm todas as
verdades na mão
só para que eu
seja um bom cidadão.
É isto: marco o rumo.
As minhas cuecas marcam o rumo.
Preciso e gosto de
uma data de coisas
e só agora o sei.
Menos da Sagres.
Mas acabarei por gostar.
Ninguém contraria
o marketing por muito tempo.
Ninguém contraria
os fabricantes de bem fazer
o bom cidadão.
E tudo graças ao
marketing.
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