Ricardo Reis aborreceu-se depressa com a
farrapagem do corso, mas assistiu a pé firme, qualquer coisa que tivesse para
fazer não era mais importante do que estar aqui, por duas vezes chuviscou,
outra vez caiu forte a chuva, e ainda há quem cante louvores ao clima
português, não digo que não, mas para carnavais não serve. No fim do dia, já
terminado o desfile, o céu limpou, tarde foi, os carros e carruagens seguiram
para o seu destino, lá ficarão a enxugar até terça-feira, retocam-lhes as
pinturas deslavadas, põem-se os festões a secar, mas os mascarados, mesmo
pingando das melenas e cadilhos, vão continuar a festa por essas ruas e
praças, becos e travessas, em vãos de escada para o que não se possa
confessar ou cometer às claras, assim se praticando por maior rapidez e
barateza, a carne é fraca, o vinho ajuda, o dia das cinzas e do esquecimento
será só na quarta-feira. Ricardo Reis sente-se um pouco febril, talvez tenha
apanhado um resfriamento a ver passar o corso, talvez a tristeza cause febre,
a repugnância delírio, até aí ainda não chegou. Um xexé veio meter-se com
ele, armado com o seu facalhão de pau e o bastão, batendo um contra o outro,
com grande estrépito, bêbado, a pedir equivocamente, Dá cá uma pançadinha, e
arremetia ao poeta, de barriga esticada para a frente, avolumada por um
postiço, almofada ou rolo de trapos, uma risota, aquele papo-seco de chapéu e
gabardina a esquivar-se ao velho do entrudo, trajado de bicórnio, casaca de
seda, calção e meia, Dá cá uma pancadinha, o que ele queria era dinheiro para
vinho. Ricardo Reis deu-lhe umas moedas, o outro fez uns passos de dança
grotescos, batendo com a faca e o pau, e seguiu, levando atrás de si um
cortejo de garotos, mais os acólitos da expedição. Num carrinho, como de
bebé, era levado, com as pernas de fora, um marmanjão de cara pintada, touca
na cabeça, babeiro ao pescoço, fingindo chorar, se é que não chorava mesmo,
até que o mostrunço que fazia de ama lhe chegava à boca um biberão de vinho
tinto em que ele mamava sofregamente, com grande gáudio do público reunido,
donde, de repente, saía a correr um rapazola que, rápido como o raio, ia
apalpar o vasto seio fingido da ama e deitava logo a fugir, enquanto o outro
berrava com voz rouca, de não duvidoso homem, Anda cá ó filho dum cabrão não
fujas, anda cá apalpar-me aqui, e juntava o gesto à palavra com ostensividade
suficiente para que as senhoras e mulheres desviassem os olhos depois de
terem visto, o quê, ora, nada de importância, a ama tem um vestido que lhe
desce até meio da perna, foi só o volume da anatomia, agarrada com as duas
mãos, uma inocência. É o carnaval português. Passa um homem de sobretudo,
transporta, sem dar por isso, um cartaz fixado nas costas, um rabo-leva
pendurado por um alfinete curvo, Vende-se este animal, até agora ninguém quis
saber o preço, mesmo havendo quem diga, ao passar-lhe à frente, Tal é a besta
que não sente a carga, o homem ri-se dos divertimentos que vai encontrando,
riem-se os outros dele, enfim desconfiou, levou a mão atrás, arrancou o
papel, rasgou-o furioso, todos os anos é assim, fazem-nos estas partidas e de
cada vez comportamo-nos como se fosse a primeira. Ricardo Reis vai
descansado, sabe que é difícil fixar um alfinete numa gabardina, mas as
ameaças surgem de todos os lados, agora desceu velozmente de um primeiro
andar um basculho preso por uma guita, atirou-lhe o chapéu ao chão, lá em
cima riem esganiçadas as duas meninas da casa, No carnaval nada parece mal,
clamam elas em coro, e a evidência do axioma é tão esmagadora e convincente
que Ricardo Reis se limita a apanhar do chão o chapéu sujo de lama. segue
calado o seu caminha, já reviu e reconheceu o carnaval de Lisboa, são horas
de voltar ao hotel.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
Legenda: fotografia
tirada do blogue Restos de Colecção
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quarta-feira, 30 de maio de 2018
TALVEZ A TRISTEZA CAUSE FEBRE
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