Tivesse eu a lucidez, a genuína meticulosidade de José-Augusto França, que em centenas e centenas de agendas deixou registados os dias
da sua vida, saberia agora quantas semanas de Carnaval já existiram sem que o
mau tempo tenha andado aos trambolhões a dar cabo da folia das gentes.
Este ano as autarquias voltaram investir milhares de euros
nas festividades carnavalescas, tradição que remete para o Carnaval de Torres
Vedras, de Ovar, de Loulé, da Nazaré, Funchal, para apenas falar dos de melhor
recorte, mas, mais uma vez, o frio e a chuva andam por aí à solta. A meteorologia
destaca avisos laranja em 10 distritos do país.
As autarquias olham os prejuízos, os foliões queixam-se de
que já não lhes bastam as patadas da troika e ainda por cima lhes lixam o
Carnaval.
Nunca me disse nada o Carnaval e apenas tenho recordação de,
em miúdo, ter ido com o meu avô assistir ao Corso do Estoril, mas apenas olhar
as bancadas vazias porque a chuva cancelou o desfile.
Como tanta outra gente transporto a ideia de que mascarados
andamos todo o ano,
Algures, num dos seus volumes da Conta-Corrente, Vergílio
Ferreira chega a escrever:
que ideia a de que
no Carnaval as pessoas se mascaram. No Carnaval desmascaram-se.
Miguel Torga, no XI volume do seu Diário, 3 de Março de
1973, é mais sorumbático:
Carnaval. Nunca o festejei, nem o apreciei festejado pelos outros. Se o
que ele significa no plano histórico: a luta ancestral da carne revoltada contra
o formalismo das instituições, o esforço que desde Roma até ao Rio de Janeiro o
civilizado jamais deixou de fazer quebrar os compromissos da disciplina
colectiva. Simplesmente, a minha natureza, não é foliona. Nem me é dado iludir,
ao abrigo de uma bula do deus Momo, o rigor impiedoso das calendas, nem sou
capaz de viver a vida a rir-me dela. Sabe-me bem no ouvido o timbre de uma
gargalhada sã, mas arranham-me a alma as casquinadas histriónicas. Bem sei que
há quem arremede o Entrudo, e entre no jogo com o conhecimento de causa e em
jeito de brincadeira. São burlões enganados. Dão rédea solta a metade de si,
fiados no critério da outra metade, mal suspeitando que quem se fantasia mente,
e, pior, mente sem dar conta. Muito embora compreensivo diante do equívoco de
uma felicidade tão sofismada que não dá pela distãncia que vai do artifício ao
lúdico, nem assim deixo de me arredar discretamente quando se aproxima a onda
trapalhona de falsas ciganas, falsos mandarins, falsas minhotas e falsos
campinos. Triste, porém. Triste a perguntar a mim mesmo de esta incapacidade de
fingimento, esta singularidade hirta e sem remédio, não será como que um
espinho a criar no corpo da saúde gregária. Se o meu próprio rosto não passará
de uma máscara também, afinal, me escondo disfarçado. A máscara vincada e
hostil da solidão.
Mas não quero fazer as despedidas literárias do Carnaval,
sem passar por António Lobo Antunes, no seu 1º livro de Crónicas, numa a que
chamou Sandokan e a minhota e
em que perpassas uma melancolia que é quase um toque de anúncio de quarta-feira
de cinzas:
No Carnaval vestiam-me de minhota e ficava três dias sozinha na
varanda, a lançar para as árvores do Jardim Constantino serpentinas que
baloiçavam nos ramos até a chuva da Páscoa as desbotar. Eu era gorda nesse
tempo quando aos dezasseis anos entrei de aprendiza no senhor Armando, deixei
de ser gorda e tornei-me forte. O meu padrinho, que almoçava connosco aos
domingos para ouvir na telefonia o relato do Atlético derivado ao aparelho dele
passar a vida no prego, e que gostava de se mascarar de mulher com lenço e
rouge, explicava, a mostrar os enchumaços do peito, que as senhoras deviam ser
espaçosas, embora o médico de família afiance, depois de me pesar, que noventa
quilos, Dona Aurora, aos cinquenta e um anos, não a quero ofender, mas talvez
seja espaço a mais. E contudo, quando eu era nova, os homens preferiam que a
gente não fosse uns esqueletos quaisqueres, e acho que foi por eu ser forte que
o Sandokan se apaixonou por mim.
Claro que não se chamava Sandokan: chamava-se Feliciano, e na época em
que me vestiam de minhota vestiam-no a ele de príncipe malaio, de turbante com
esmeraldas de vidro e bigodes de rolha, e trotava-me debaixo da varanda, com os
pais, para o Carnaval do Éden, onde no fim dos palhaços desprendiam dúzias de
balões do tecto e piratas de perna de pau enfiavam papelinhos desalmados no
pescoço das fadas de cabelo loiro de estopa e varinha de condão de tabopã,
sufocadas de lágrimas de humilhação.
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