terça-feira, 4 de março de 2014

TEMPOS DE ILUSÕES



Tivesse eu a lucidez, a genuína meticulosidade de José-Augusto França, que em centenas e centenas de agendas deixou registados os dias da sua vida, saberia agora quantas semanas de Carnaval já existiram sem que o mau tempo tenha andado aos trambolhões a dar cabo da folia das gentes.

Este ano as autarquias voltaram investir milhares de euros nas festividades carnavalescas, tradição que remete para o Carnaval de Torres Vedras, de Ovar, de Loulé, da Nazaré, Funchal, para apenas falar dos de melhor recorte, mas, mais uma vez, o frio e a chuva andam por aí à solta. A meteorologia destaca avisos laranja em 10 distritos do país.

As autarquias olham os prejuízos, os foliões queixam-se de que já não lhes bastam as patadas da troika e ainda por cima lhes lixam o Carnaval.

Nunca me disse nada o Carnaval e apenas tenho recordação de, em miúdo, ter ido com o meu avô assistir ao Corso do Estoril, mas apenas olhar as bancadas vazias porque a chuva cancelou o desfile.

Como tanta outra gente transporto a ideia de que mascarados andamos todo o ano,

Algures, num dos seus volumes da Conta-Corrente, Vergílio Ferreira chega a escrever:
que ideia a de que no Carnaval as pessoas se mascaram. No Carnaval desmascaram-se.

Miguel Torga, no XI volume do seu Diário, 3 de Março de 1973, é mais sorumbático:

Carnaval. Nunca o festejei, nem o apreciei festejado pelos outros. Se o que ele significa no plano histórico: a luta ancestral da carne revoltada contra o formalismo das instituições, o esforço que desde Roma até ao Rio de Janeiro o civilizado jamais deixou de fazer quebrar os compromissos da disciplina colectiva. Simplesmente, a minha natureza, não é foliona. Nem me é dado iludir, ao abrigo de uma bula do deus Momo, o rigor impiedoso das calendas, nem sou capaz de viver a vida a rir-me dela. Sabe-me bem no ouvido o timbre de uma gargalhada sã, mas arranham-me a alma as casquinadas histriónicas. Bem sei que há quem arremede o Entrudo, e entre no jogo com o conhecimento de causa e em jeito de brincadeira. São burlões enganados. Dão rédea solta a metade de si, fiados no critério da outra metade, mal suspeitando que quem se fantasia mente, e, pior, mente sem dar conta. Muito embora compreensivo diante do equívoco de uma felicidade tão sofismada que não dá pela distãncia que vai do artifício ao lúdico, nem assim deixo de me arredar discretamente quando se aproxima a onda trapalhona de falsas ciganas, falsos mandarins, falsas minhotas e falsos campinos. Triste, porém. Triste a perguntar a mim mesmo de esta incapacidade de fingimento, esta singularidade hirta e sem remédio, não será como que um espinho a criar no corpo da saúde gregária. Se o meu próprio rosto não passará de uma máscara também, afinal, me escondo disfarçado. A máscara vincada e hostil da solidão.

Mas não quero fazer as despedidas literárias do Carnaval, sem passar por António Lobo Antunes, no seu 1º livro de Crónicas, numa a que chamou Sandokan e a minhota  e em que perpassas uma melancolia que é quase um toque de anúncio de quarta-feira de cinzas:

No Carnaval vestiam-me de minhota e ficava três dias sozinha na varanda, a lançar para as árvores do Jardim Constantino serpentinas que baloiçavam nos ramos até a chuva da Páscoa as desbotar. Eu era gorda nesse tempo quando aos dezasseis anos entrei de aprendiza no senhor Armando, deixei de ser gorda e tornei-me forte. O meu padrinho, que almoçava connosco aos domingos para ouvir na telefonia o relato do Atlético derivado ao aparelho dele passar a vida no prego, e que gostava de se mascarar de mulher com lenço e rouge, explicava, a mostrar os enchumaços do peito, que as senhoras deviam ser espaçosas, embora o médico de família afiance, depois de me pesar, que noventa quilos, Dona Aurora, aos cinquenta e um anos, não a quero ofender, mas talvez seja espaço a mais. E contudo, quando eu era nova, os homens preferiam que a gente não fosse uns esqueletos quaisqueres, e acho que foi por eu ser forte que o Sandokan se apaixonou por mim.
Claro que não se chamava Sandokan: chamava-se Feliciano, e na época em que me vestiam de minhota vestiam-no a ele de príncipe malaio, de turbante com esmeraldas de vidro e bigodes de rolha, e trotava-me debaixo da varanda, com os pais, para o Carnaval do Éden, onde no fim dos palhaços desprendiam dúzias de balões do tecto e piratas de perna de pau enfiavam papelinhos desalmados no pescoço das fadas de cabelo loiro de estopa e varinha de condão de tabopã, sufocadas de lágrimas de humilhação.

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