Retrato dum Amigo Enquanto Falo
Eduarda Dionísio
Capa: Cristina Reis
O Armazém das Letras, Lisboa, 1979
A pouco e pouco nas famílias da oposição começou também a crescer a
impotência consciente, a força do destino adverso irresistível sobre nós, a
impossibilidade de até ao fim combater a ditadura porque os anos passavam.
Instalavam-se dentro da incomodidade e muitas vezes deixavam de ter a percepção
da mudança e da diferença entre as coisas, as épocas, as pessoas, as datas, as
palavras. Não era o medo, nem a falta de coragem, era uma incapacidade de análise,
de invenção e de combate. Isto é uma coisa que marca. Não sei se te marcou
profundamente, mas marca. E houve cada vez mais disputas: a quem pertencia a oposição,
a que famílias e que ideias, a que escritos, a que organizações, a que siglas;
e mais desconfiança para com todos os que de novo ascendiam às suas ideias ou
conversas, regozijando-se ao mesmo tempo, ajudando-os com o entusiasmo e com
cuidado, não permitindo excessos, fornecendo o que era seu, contabilizando,
facturando por dentro não permitindo autonomias, nem emancipações, acarinhando,
querendo sobretudo re-produzir-se.
Não entendendo algumas zonas de assuntos do que os mais novos diziam –
a economia e as colónias; sabendo o que entre si diziam nos estaleiros, nas
fábricas, nas igrejas, sendo os campos um cenário muito longínquo onde
depositavam muita fé; não acreditando em movimentações subterrâneas, nem de
estudantes nem de católicos – estás a perceber; fugiam ao destino devagar – as deserções,
as fugas para o estrangeiro, o peso do serviço militar, a droga.
Sem comentários:
Enviar um comentário