segunda-feira, 9 de maio de 2022

IRREMEDIÁVEL

Quando eu continuar na minha marcha eterna,

direito no caixão, sereno e branco,

tu ficarás sozinha.

E talvez só entendas claramente

que, além de ti, eu era a única pessoa.

As mãos que se estenderem para ti

ser-te-ão irreais, como de fumo.

E todas as bocas serão gélidas e mortas,

e todas as palavras gélidas e mortas,

tudo gélido e morto para ti.

Terás os cabelos singelamente escorridos

e os olhos molhados

e as mãos abandonadas.

E só então (tam tarde) tu verás,

com a lucidez que vem depois das coisas consumadas,

a verdade total.

Tuas olheiras roxas

e os ombros caídos ao peso dos braços

serão a medida exata desta palavra: angústia.

Um manto de inutilidade e do vazio cairá sobre as coisas.

Ah mas então será tarde, imensamente tarde!

Porque eu estarei direito no caixão, sereno e branco,

sem poder repetir-me nunca mais.

 

Mário Dionísio em Novo Cancioneiro

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