domingo, 22 de maio de 2022

E NÃO CAMINHOS POR ANDAR COMO DANTES


 Poderão dizer que é uma questão de sorte. Não tenho qualquer problema em admitir que sim. Mas depois há sempre mais qualquer coisa e a sorte transforma-se em outras coisas: conhecer, ter vontade de saber mais qualquer coisinha para chegar à grande luz, à enorme revelação.

Num jornal, que poderei admitir que tenha sido no JL, li o poema Esplanada de Manuel António Pina.

Não conhecia o autor e aquele foi o primeiro poema que li.

E gostei de uma maneira a que não posso chamar outra coisa senão deslumbra- mento.

De uma forma simples, tão simples que até arrepia, estava ali, o relógio dum tempo, seja esse tempo o que for, de quem for. Ali esparramava-se o que foi o passado de uma geração, depois o surgir de uma ilusão, talvez diversas ilusões.

Por onde é que eu andara que este tipo passou completamente ao meu lado?

O Pina nasceu em 1943, eu nasci dois anos depois.

Se há poemas perfeitos este é um deles.

Doze linhas de versos encaixados num olhar da esplanada seja ela qual for:

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.

Quando então li o poema, que faz parte do livro Um Sítio Onde Pousar a Cabeça, editado em 1991, tenho a vaga ideia de ter lido o poema durante o ano de 2009, ficaram estas palavras chaves faróis de um tempo, que assim, ou de outro modo, uma geração viveu.

 envelhecemos todos, agora lês saramagos e coisas assim, já não fico a ouvir-te como antigamente olhando as tuas pernas que subiam lentamente até um sítio escuro dentro de mim, o café é um banco, Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu, agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes, e não caminhos por andar como dantes.

 Andei em demanda do livro, que é o seu sexto volume de poesia, mas nunca o encontrei. Tratou-se de uma pequena edição de um pequeno livro, em edição do autor e fora do mercado. Fui ficando com o recorte colado numa folha A4 e só em Outubro de 2001, quando o Pina publicou Poesia Reunida a que passei a ficar com o poema fazendo parte de um livro.

 Mais ou menos por este tempo, recordo-me de ter lido uma frase do Manuel António Pina que nunca esqueci: «adultos que não souberam honrar os jovens que foram».

A frase do Pina era endereçado aos que em tempos defenderam ideias e ideais que depois mandaram para as urtigas.

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