Põe uma pedra
uma pedra sobre a infância
Para que de vez se cale essa respiração
contida suspensa no escuro
Põe, digo-te, uma pedra de silêncio sobre
essa infância essa fala ininterrupta essa
falagem que falha e promete e inventa
os sonhos e as promessas o riso sem porquê
Para que de vez se interrompa a esperança esse
mal que não desiste. Escreve, faz o que o ditado dita:
Enterra no silêncio da pedra essa intolerável coisa
que é a infância, as vozes da noite do poço.
Apaga a infância isso que falta sempre à chamada
e para sempre trocou já os desejos e os medos.
Já não vais a tempo, ela enredou sem remédio
as vidas os nomes a tua condenação. Mas vai.
Para que se cale de vez essa respiração que se ri
na cara da morte, nos olhos do enviado de deus
recita o que o ditado ditou: Põe uma pedra sobre
a infância e ouve a era a folhagem que cobrem
o céu em ruínas.
Também então havia uma pedra no canto do quarto
Alio onde a noite começava, era uma pedra e depois
crescia, petrificava-se no seu coração de pedra
dividia-se e eram várias crescendo; ocupando
todo o espaço do sono, do sonho do mundo.
Pesavam no teu peito procuravam-te os olhos
que de pedra ficavam e o grito era uma pedra
que na garganta subia contra a outra pedra.
O próprio ar golpeado era e dividia a voz
pedra contra pedra, o deserto a perder de vista.
Põe uma pedra sobre outra pedra. Inventa uma
outra infância de que possas recordar-te.
Obedeces ao poema e é sem espanto que vês:
nada acontece. Não há
nenhuma voz na voz dos condenados.
Manuel Gusmão
3 comentários:
A poesia não consegue seduzir-me; decididamente não sou leitor de poesia; nem por um botão da camisa a poesia consegue "agarrar-me". Não entendo tal desprendimento.
despreendimento
É uma pena, Seve. Porque temos excelentes poetas. Desconheço se há caminhos ou maneiras de entrar na Poesia. Tanto quanto me lembro é uma questão de perseverança. Daquelas histórias de onde não houver uma saída tem necessáriamente de haver uma saída. Penso que já contei a história, mas não há qualquer problema em tornar a contar. Os poetas que conhecia eram todos derivados das selectas literárias do curso de liceu. E todos os que lá estavam antologiados eram poetas apoiantes e defensores do estado salazarista, poetas completamente menores e bafientos. Um dia o meu pai apareceu em casa com a «Antologia Portuguesa do Pós Guerra», que apenas durou um ou dois dias nas livrarias porque a PIDE tratou de o colocar «Fora do marcado» e em que me embasbaquei com verdadeiros poetas e que desconhecia por completo. Falei com o meu pai, que não era muito de poesias, mas foi-se informando e aconselharam-no a comprar a excelente Colecção Poetas de Hoje da Portugália Editora. E foi assim que a minha entrada em leitor de Poesia acabou por acontecer.
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