quinta-feira, 19 de maio de 2022

VELHOS RECORTES


 A escritora Ana Margarida de Carvalho, em Dezembro de 2016, ao fim de 24 anos, foi despedida, da revista Visão e deixou esse despedimento retratado num depoimento que espelha no que se tornou o jornalismo português. «Sem uma única palavra de explicação», a jornalista considerou-se «destratada e desconsiderada e humilhada», para além de ser «coagida a assinar um contrato de rescisão, tudo menos amigável».

Ana Margarida de Carvalho assinou reportagens que lhe valeram sete dos mais prestigiados prémios do jornalismo português, entre os quais o Prémio Gazeta Revelação do Clube de Jornalistas de Lisboa, do Clube de Jornalistas do Porto ou da Casa da Imprensa. Publicou artigos na revista Ler, no Jornal de Letras, na Marie Claie e ocupava o cargo de Grande Repórter na Visão. Também passou pela redacção da SIC. Foi vencedora do Grande Prémio de Romance e Novela APE com o seu romance de estreia, «Que Importa a Fúria do Mar» e «Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato».

«Havia um autor famoso que dizia “fala sobre o que quiseres, mas não escrevas sobre a vidinha”. Pois venho desobedecer-lhe, é justamente da vidinha que eu venho aqui tratar. Da minha. E quero, antes de tudo, agradecer a tantos e tantos amigos e colegas (alguns distantes) que se interessaram e quiseram saber e me telefonaram e mandaram mensagens. Nem imaginam como foi importante para mim. Não vou esquecer. Os que não me falaram, não se preocupem, eu já esqueci.
1º- Não deve haver nada mais inglório do que acabar uma carreira de 24 de jornalismo num gabinete de um director de recursos humanos.
2º- Não deve haver nada mais inglório do que ter de enfrentar sozinha um destes seres anónimos e transitórios, sem uma única palavra de explicação, de apoio e de solidariedade de quem devia e podia.
3º- Não deve haver nada mais inglório do que ser destratada e desconsiderada e humilhada e coagida a assinar um contrato de rescisão, tudo menos amigável.
4º- Este meu despedimento não foi a pior coisa que me aconteceu naquela redacção. Foi apenas a última.
5º- Não guardo qualquer ressentimento em relação a esta direcção. É tão má como qualquer outra anterior (sem contar obviamente com a do Carlos Cáceres Monteiro, o único director, grande-repórter, líder que conheci). Estes apenas fazem o que lhes mandam- e mal. São outros seres anónimos e transitórios. E estão assustados (no sentido brechtiano do termo)
6º- Cometi um erro: foi levar o jornalismo demasiado a sério, quando ele não queria ser levado a sério.
7º- Não, cometi, dois erros: o de a certa altura da minha vida ter colocado o jornalismo à frente de tudo. Da literatura, sim (comecei a escrever muito tarde), dos meus próprios filhos, quando eram pequenos - e isto dói.
8º- Terceiro erro (há sempre um terceiro): estava sempre tão atolada em trabalho, tão concentrada nas reportagens, nas entrevistas, numa correria, cheia de entusiasmos - o que não faz mal nenhum porque era muito nova, tinha muita energia, mas tinha muita ingenuidade também. Resultado: nunca dei conta, a tempo, de como a incompetência e falta de talento estão associadas, por sua vez, a um talento desmesurado para a intriga e para o 'mau coleguismo'. Palavra que não fazia ideia de que a inveja podia ser uma força tão mobilizadora.
9º- No jornalismo conheci as piores pessoas, as mais cobardes, as mais desleais, as mais mesquinhas, as mais medíocres, as mais desinteressantes, as mais incompetentes, as mais desonestas, algumas nem sabia que podiam existir (achava que era só nos livros, enfim)... Mas depois conheci pessoas maravilhosas que se tornaram amigas de infância. E isso vale tudo e apaga o resto.
10º- Por causa do jornalismo contactei de perto com personalidades admiráveis, fui a sítios onde jamais iria, conheci mundos outros. Nunca cometi nenhum erro grosseiro, nunca falhei um prazo, nunca me atrasei na entrega de algum trabalho... Devo-lhe muito, mas não farei as pazes com o jornalismo tão cedo. Talvez um dia. Porque o trabalho é um direito, não apenas um dever, a minha vontade é, juro, ir-me embora, sair do país, ir fazer voluntariado para um sítio longínquo e perigoso, onde não me considerem «dispensável». . Bom... depois do Natal logo vejo...
Obrigada a todos os que chegaram até aqui.

 

Ana Margarida de Carvalho

2 comentários:

Luis Eme disse...

Tanto que havia a dizer, Sammy...

Esta deve ser uma das profissões em que se "envelhece" mais rapidamente e em que a experiência é tida como um aspecto negativo.

Preferem sempre "sangue novo" e colunas mais maleáveis...

Sammy, o paquete disse...

Sim, havia muito a dizer.
Estas coisas doem até à teima dos ossos.
Mais ainda porque só agora, ao fim de seis anos!!!! ter tomado conhecimento do que aconteceu à Ana Maria Carvalho. Gostei dos seus dois livros: «Que Importa a Fúria do Mar» e «Não se Pode Morar Nos Olhos de um Gato» e esse gostar não tem nada a ver com a circunstância de ser filha de um dos escritores que mais aprecio: Mário de Carvalho.
Cada vez leio menos jornais e quase estou determinado a seguir as pisadas da Loretta Bell, a mulher do protagonista de «Este País Não é Para Velhos»
Há um livro, editado em 2010 e coordenado por Fernando Correia e Carla Baptista «Memórias Vivas do Jornalismo», com uma série de entrevistas feitas a diversos jornalistas de décadas . O jornalismo passava de mão em mão, de experiência em experiência, por gente, uns de direita, outros de esquerda, mas todos com uma ética, uma solidariedade profissional que não tinha nada a ver com «brincadeiras» parvas, como aquela do presidente Marcelo a enganar Paulo Portas com uma qualquer Vichyssoise de um qualquer banquete.
Um passo da entrevista de João Coito, jornalista de direita: «Devo dizer-lhe que ainda hoje (a entrevista é feita em 2004) alguns dos meus maiores amigos são de esquerda. Isto para lhe contara o que era a camaradagem naquela altura. Há coisas que acontecem e que então eram impensáveis. Por exemplo, os estagiários aprendiam mesmo a profissão, não havia escolas de comunicação social…»