Cerejas
Poemas de Amor de autores portugueses antologiados por Gonçalo Salvado
Capa: Desenho de José Guimarães
Editorial Tágide, Fundão, Junho de 2004
Quando François
Mitterrand instalou pela primeira vez (e última) o socialismo no trono de Deus
(o do poder) pediu a Barbara Hendrix para cantar a mítica canção da Comuna, «Le
temps des cerises». Quer dizer, o tempo da esperança e da felicidade quem com
candura e fervor populares, o primeiro povo de esquerda tirou do seu coração.
Mais lírica do que revolucionária, a canção popular instalou na memória o fruto
de Maio em vez da rosa de todas as estações. E aí ficou, pois ainda há pouco
mais de vinte anos o último «socialista» do Ocidente se lembro dela para
símbolo de uma vitória destinada a celebrar uma alegria comum e tão plural como
a da pouca aristocrática cerejeira.
Esta metamorfose
do trivial em fraternal, do fruto que não extingue a sede nem a fome, mas
apenas as decora, como a guirlanda que as raparigas outrora convertiam em
brincos, foi sol de pouca dura. Politicamente, o tempo das cerejas parecia
fadado para a nostalgia como o da hora que inventou a canção e a sua música.
Mas como a da cerejeira é uma nostalgia futurante, casa Primavera no-la traz de
volta. Era assim também no tempo de Tchekov e contudo ele converteu o «cerejal»
no mais nostálgico dos jardins. O tempo do cerejal não é o das cerejas e da sua
gloriosa trivialidade. É o da sua flor tão onírica como a das amendoeiras. A
Tchekov não lhe lembrava a neve, que o não precisava, mas só o tempo frágil de
um Maio tão magicamente florido como logo sumido no esplendor do tempo e do
Verão. O tempo das cerejas é o que fica connosco, o que se guarda nos olhos e
na boca e do Verão. O tempo das cerejas é o que fica connosco, o que se guarda
nos olhos e na boca e não precisos de ser lembrado. O tempo das flores do
cerejal é o que se está esquecendo de nós enquanto contemplamos a sua
evanescente realidade cor-de-rosa que é só rosada aurora sem crepúsculo. É
essa, afinal, aquela que a canção evocava. Entre a flor e o fruto a vida passa
sem se despedir. A nossa, claro.
Texto de Eduardo Lourenço
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