domingo, 17 de novembro de 2024

OLHAR AS CAPAS


Cerejas

Poemas de Amor de autores portugueses antologiados por Gonçalo Salvado

Capa: Desenho de José Guimarães

Editorial Tágide, Fundão, Junho de 2004

Quando François Mitterrand instalou pela primeira vez (e última) o socialismo no trono de Deus (o do poder) pediu a Barbara Hendrix para cantar a mítica canção da Comuna, «Le temps des cerises». Quer dizer, o tempo da esperança e da felicidade quem com candura e fervor populares, o primeiro povo de esquerda tirou do seu coração. Mais lírica do que revolucionária, a canção popular instalou na memória o fruto de Maio em vez da rosa de todas as estações. E aí ficou, pois ainda há pouco mais de vinte anos o último «socialista» do Ocidente se lembro dela para símbolo de uma vitória destinada a celebrar uma alegria comum e tão plural como a da pouca aristocrática cerejeira.

Esta metamorfose do trivial em fraternal, do fruto que não extingue a sede nem a fome, mas apenas as decora, como a guirlanda que as raparigas outrora convertiam em brincos, foi sol de pouca dura. Politicamente, o tempo das cerejas parecia fadado para a nostalgia como o da hora que inventou a canção e a sua música. Mas como a da cerejeira é uma nostalgia futurante, casa Primavera no-la traz de volta. Era assim também no tempo de Tchekov e contudo ele converteu o «cerejal» no mais nostálgico dos jardins. O tempo do cerejal não é o das cerejas e da sua gloriosa trivialidade. É o da sua flor tão onírica como a das amendoeiras. A Tchekov não lhe lembrava a neve, que o não precisava, mas só o tempo frágil de um Maio tão magicamente florido como logo sumido no esplendor do tempo e do Verão. O tempo das cerejas é o que fica connosco, o que se guarda nos olhos e na boca e do Verão. O tempo das cerejas é o que fica connosco, o que se guarda nos olhos e na boca e não precisos de ser lembrado. O tempo das flores do cerejal é o que se está esquecendo de nós enquanto contemplamos a sua evanescente realidade cor-de-rosa que é só rosada aurora sem crepúsculo. É essa, afinal, aquela que a canção evocava. Entre a flor e o fruto a vida passa sem se despedir. A nossa, claro.

Texto de Eduardo Lourenço

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