terça-feira, 12 de novembro de 2024

ESTUDO DO ROSTO

espelho meu, quem sou

eu? não tenho tido tempo para deixar a barba por fazer,

quanto ao resto, tenho a cara de sempre,

a que muda com os climas, e a mesma

necessidade de aperfeiçoara a técnica do

auto-retrato, de forma repetitiva e sem paixão,

para reconduzir um rosto que muda

com a luz e determinadas palavras,

foi assim que descobri essa tendência para

inclinar a cabeça para mais perto

de um dos ombros enquanto

morro,

por segundos, ao ler nesta descrição de livros alinhados

nas estantes, roupa dobrada nos armários, família

em volta da mesa, os princípios de uma ordem

provisória, que não sobreviverá sem mim

ou, no pior dos cenários, me sobreviverá,

afinal, como tudo o resto,

sem sobressaltos e uma memória

finita.

 

coleciono fotografias de família, vendidas em alfarrabistas

por pouco dinheiro, como prova de que estamos

a uma ou duas gerações do esquecimento,

invento dedicatórias, parentescos, datas e locais,

espalho-as em molduras  pela casa para confundir visitas

e de me vigar de uma memória que me atraiçoa sem descanso

porque

este rosto me levou mais de três décadas a destruir,

 

para agora abandonar à sua sorte, sem a gentil companhia de

desconhecidos, na descida aos infernos pelos túneis

das estações de metro

ou num café quase vazio

de Alcântara, a meio da tarde, quando as mesas estão reservadas

          para os

que não têm ocupação ou pressa. os jornais do dia no balcão e

na parede do fundo o espelho convexo em que

Parmigiano e depois Ashley se viram

sozinhos, rodeados de objectos e a certeza de mais uma

morte fixada em auto-retrato.

Tiago Araújo em Resumo: a poesia em 2010

 

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