espelho meu, quem sou
eu? não tenho tido tempo para deixar a barba por fazer,
quanto ao resto, tenho a cara de sempre,
a que muda com os climas, e a mesma
necessidade de aperfeiçoara a técnica do
auto-retrato, de forma repetitiva e sem paixão,
para reconduzir um rosto que muda
com a luz e determinadas palavras,
foi assim que descobri essa tendência para
inclinar a cabeça para mais perto
de um dos ombros enquanto
morro,
por segundos, ao ler nesta descrição de livros alinhados
nas estantes, roupa dobrada nos armários, família
em volta da mesa, os princípios de uma ordem
provisória, que não sobreviverá sem mim
ou, no pior dos cenários, me sobreviverá,
afinal, como tudo o resto,
sem sobressaltos e uma memória
finita.
coleciono fotografias de família, vendidas em alfarrabistas
por pouco dinheiro, como prova de que estamos
a uma ou duas gerações do esquecimento,
invento dedicatórias, parentescos, datas e locais,
espalho-as em molduras pela casa
para confundir visitas
e de me vigar de uma memória que me atraiçoa sem descanso
porque
este rosto me levou mais de três décadas a destruir,
para agora abandonar à sua sorte, sem a gentil companhia de
desconhecidos, na descida aos infernos pelos túneis
das estações de metro
ou num café quase vazio
de Alcântara, a meio da tarde, quando as mesas estão reservadas
para os
que não têm ocupação ou pressa. os jornais do dia no balcão e
na parede do fundo o espelho convexo em que
Parmigiano e depois Ashley se viram
sozinhos, rodeados de objectos e a certeza de mais uma
morte fixada em auto-retrato.
Tiago Araújo em Resumo: a poesia em 2010
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