sábado, 1 de fevereiro de 2020

OLHAR AS CAPAS


Casa da Malta

Fernando Namora
Capa e ilustrações de Manuel Ribeiro de Pavia
Editorial Inquérito, Lisboa, 1951

Abílio, durante os seus três anos de vadiagem, lembrava-se sempre, à noite, do marulhar do rio. Era como se lhe faltasse uma música de embalar. Quando o rapaz do cornetim lhe ensinara o segredo de dominar e compor os sons, ao entardecer ia para um canto solitário, tocando, em surdina, uma toada lenta e monótona – imitando o rio. Imitando o rio e a melancolia da sua vida de acaso. Mesmo depois do circo desmanchado, continuara companheiro do tocador. Amigos, unidos por coisas que nem se esclareciam e pela música.
O circo acabara numa aldeia escura da Beira. Quando chegaram a esses sítios amaldiçoados em penedias e estevas já o grupo tinha minguado: as raparigas gordas fugidas na companhia de maltezes, a velha e duas crianças mortas de doença e miséria.
A velha arrastara ainda por um ano uma perna ulcerada e imunda. Ia aos médicos das terras onde paravam e eles diziam:
- Só cortando a perna.
E ela abanava furiosamente a cabeça.
Mas era ainda a velha que cozinhava umas sopas para o grupo, apesar do nojo dessa mistura de chagas, trapos purulentos e de comida. Depois que ela morrera, o chefe tinha vendido o carro e as mulas; tinha-os bebido, e ninguém mais pensara em comer o caldo. Pedaços de pão, chouriço, fruta roubada nos pomares das estradas.
A atracção do circo era agora o ganapo, esbandalhando o corpo como uma aranha; o rapaz do cornetim substituíra vários números acrobáticos e Abílio tocava o tambor e recitava versos brejeiros.

2 comentários:

Luis Eme disse...

(Estava a ler as palavras de Vergílio sobre Ramos Rosa e depois desço um degrau e descubro o Manuel Ribeiro Pavia, outro grande inadaptado ao mundo das moedas, incapaz de valorizar a sua arte, por ser um simples... morreu na miséria, perante a distração dos amigos...)

Sammy, o paquete disse...

No que ao Neo-Realismo diz respeito, sou suspeito. Mas as capas dos livros daquele tempo são lindíssimas, únicas: Manuel Ribeiro de Pavia, António Domingues, Júlio Pomar, Victor Palla. Lima de Freitas, Vespeira, Carlos Botelho, Cipriano Dourado, tantos outros.
O meu avô paterno é responsável por uma série de gestos, comportamentos, atitudes e histórias que deixaram marca e que me têm acompanhado pela vida.
Uma delas é ter um profundo ódio aos meses de Janeiro e Fevereiro. São tempos que me paralisam. Se pudesse metia pausa sabática até que os primeiros trinados da Primavera se fizessem ouvir.
Nasceu (4) e morreu em Fevereiro (27). Tinha 93 anos e amanhã participará, em breve episódio de memória, por este Cais.
Foi neste andar de odiento tempo que me deu para olhar capas velhas e, mais pelas capas do que pelos livros em si, parei em Fernando Namora que nunca subiu a autor do meu panteão.
Manuel Ribeiro de Pavia é bem um exemplo daquele extenso número de artistas que este País atropelou em vida e deixou que caíssem no mais lamentável esquecimento.