Se ainda
andasse por cá, o João César Monteiro fazia hoje 81 anos.
Ontem, a
Câmara Municipal da Figueira da Foz em lugar de lhe dar um nome de rua decidiu
dar o seu nome a um auditório do Centro de Artes e Espectáculos, o que me
parece mais ajustado.
Ajustado nos
parece também recordar a Certidão de Nascimento que o João escreveu e que foi
publicada no semanário & etc. nº 4 de 28 de Fevereiro de 1973.
Já agora se
dirá que amanhã passam 17 anos sobre o dia em que o João, de cigarro na beiça,
sem dever nada a ninguém, partiu sabe-se lá para onde.
«Tive infância caprichosa e bem nutrida,
no seio de uma família fortemente dominada pelo espirito, chamemos-lhe assim,
da 1 ª República. Escusado será dizer que abundavam os dichotes anti-clericais,
muito embora o meu pai desejasse que eu viesse a seguir a carreira
eclesiástica. Em suma: não se percebia nada. Pelo menos à primeira vista.
Por volta dos 16 anos, fixei-me com a
família em Lisboa, para poder prosseguir a minha medíocre odisseia liceal.
Instalado no colégio do dr. Mário Soares, acabei por ser expulso ao contrair
perigosíssima doença venérea. Pensei, então, que entre a política e as
fraquezas da carne devia existir qualquer obscena incompatibilidade e nunca
mais fui visto na companhia de políticos.
Tendo finalmente conseguido dissipar
toda a fortuna na satisfação de brutais apetites, o meu garboso pai veio a
falecer vitimado por cruel ataque cardíaco, deixando-me, perplexo e sem um
chavo, a coçar a cabeça. Era chegada a hora de dar o corpinho ao manifesto,
como a maior parte das pessoas. Filho que era de meu pai, atravessei
senhorialmente muitos e variados empregos, mas em breve me apercebi que já não
podia olhar o mundo da mesma maneira. Fui até Paris para ensaiar até onde me
era possível ir. Não me era possível ir muito longe. Meses depois, «ayant connu
pas mal de choses», era repatriado.
Em 1960, encontrei o Sr. Seixas Santos
que teve a bondade de me ensinar um pouco do muito que sabe de cinema. O Sr.
Vasconcelos andava ao mesmo e parecia fazer progressos que, infelizmente (para
ele), o futuro ainda não comprovou.
No ano seguinte, trabalhei como
assistente de realização do Sr. Perdigão Queiroga e admito que poderia ter
aprendido mais qualquercoisinha se não tivesse sido tão presunçoso.
Em 1963, na injusta qualidade de
bolseiro da Fundação Calouste Gu1benkian, parti para Londres e fim de
frequentar a London School of Film Technique. Suponho que nunca por aquela
escola passou aluno tão mau, mas nesse passo não tive grandes culpas no
cartório: é que de facto os ingleses não nasceram para o cinema. Aliás, ainda
não percebi muito bem para que é que os ingleses nasceram. Deve com certeza ser
pela mesma razão que nasceram os percevejos, as baratas e o pão integral, vulgo
pão que o diabo amassou. A estadia em Londres, essa foi extremamente divertida,
sobretudo no salutar plano das doces amizades; contudo, no regresso à Pátria, o
meu pavoroso aproveitamento escolar foi muito sentido, como vergonhosa acção,
por provincianas carpideiras a quem nunca passará pelas cabeças, tão chorosas
dos mal gastos dinheirinhos da Gulbenkian, que a estupidez e a incompetência
assentam arraiais em qualquer parte do mundo, inclusive no coração de Londres,
sob o pomposo nome de London School of Film Technique.
Em 1965, conheci o Paulo Rocha e
os seus «Verdes Anos», o Fernando Lopes e o seu «Belarmino». Tomei-me de
amizade pelo Fernando e de amores pelo filme do senhor Rocha, cujos hábitos de
anacoreta o tornavam pouco acessível.
Nesse mesmo ano, tentei pôr de pé
um projecto de filme em 16 m/m, intitulado «Quem espera por sapatos de defunto
morre descalços». Dois dias de filmagens e rabinho entre as pernas. Falta de
xis. Esse ano negro não findaria, no entanto, sem que deixasse a meio o
primeiro filme publicitário que me enfiaram nas unhas: de como, graças ao
Não-sei-quê, fazer desaparecer em três penadas o mau cheiro do sovaco, e me
internassem num hospício para acalmar as febres.
De novo na vida civil, os meus excessos
ultra-românticos, temperados pela mais nobre profundidade sentimental, tiveram
enfim (ai filhas de Sidon) a justa consagração, o que não me livrou de amouchar
durante um ano, como escriba de Filmes Castello Lopes, Lda.
Em 1968, após um reconfortante período
em que descobri que mães há muitas e pai só um, o celeste, dei mostras de, para
além do instinto de conservação, possuir muitos outros bons instintos e fui
finalmente recomendado ao produtor Ricardo Malheiro. Foi, pois, na mais
desregrada euforia que fiz o filmezinho sobre Dona Sophia. Pouco tempo volvido
(ó desgraça!), o Malheiro ia à falência ou, o que vinha a dar ao mesmo, a
falência ia ao Malheiro. Sem grande proveito, tentei ainda a publicidade.
Desesperadamente. Três ou quatro filmes, uma viagem, hélas! à Guiné, e disse.
No ano seguinte, estimulado por algumas
boas vontades (saudades), resolvi repegar no projecto «Quem espera por sapatos
de defunto morre descalço», cujas filmagens se arrastaram ao longo de dois
anos. Numa altura em que eu já deitava o filme pelos olhos, a Fundação
Gu1benkian concedeu-me (obrigadinho) um subsidio de $$$$$$$$$$$$$$$$... 180
contos, divididos em 3 prestações. Aqui, tive a tentação de dar uma volta. Pedi
ao Vasconcelos para filmar dois planos que faltavam ainda ao filme, e fui.
Itália e a inevitável Paris. Esgotada a finança, voltei para acabar o filme,
receber a última prestação e partir outra vez, ora de comboio, ora à boleia,
consoante a inspiração: Barcelona, Marselha, Florença, Milão, Como, Cernobbio,
Paris.
Entretanto, o filme começou por ser
relativamente mal recebido junto do Mecenas (quereriam ópera por 180 contos?),
continuou, pateado num festival no Sul de Espanha e foi friamente acolhido
pelos críticos presentes em Nice, aquando da chamada Semaine du Jeune Cinéma
Portugais. Foi pena, porque me teria dado jeito, sobretudo no que toca à
fruição de algumas benesses locais, mas já que não pôde ser, paciência! Tirando
isso, aproveitei a estadia niceoise para comprar um lindo fato de banho de duas
peças com a nota de 100 francos que o João Bénard me emprestou e ameacei partir
uma garrafa de tinto na cabeça do Cunha Teles que, impensadamente, me chamou
oportunista. Não sou uma natureza agressiva, antes pelo contrário, mas ser
insultado por um manhoso negociante é coisa que me põe fora de mim. Detesto a
promiscuidade e ensinaram-me a guardar escrupulosamente as distâncias. Por uma
única e bem simples exigência: a de manter intacta e intocada e minha pessoa,
para além da consciência de todos os meus erros e imperfeições. Levo, as mais
das vezes, esta fantochada com o riso no costado, mas não é por acaso que, cada
vez mais, me dou com menos pessoas.
Arrumados definitivamente os «Sapatos»
iniciei, no Verão passado, «A Sagrada Família», que espero terminar por um
destes dias. Presumo que não lhe estará reservada melhor sorte que a do filme
anterior, mas devo confessar que a considero uma experiência relativamente
importante, se não, e com certeza que não, no plano global de um cinema
português, pelo menos, no plano particular do meu próprio cinema e na exacta
medida em que, por um lado, discute e corrige dialècticamente o filme anterior
e, por outro, prepara já o filme seguinte.
O filme seguinte chama-se «A
Tempestade», baseia-se no poema dramático de Shakespeare e na ópera de Purcell
e será perpetrado numa Arrábida pintada a Robbialac se, como se espera, a
edilidade local não levantar intransponíveis obstáculos. Quanto mais não seja,
há que atender aos relevantes serviços que a prestimosa tinta, que é só a que
mais pinta e que mais dura, tem prestado ao colorido da Nação.
Que pensar de tudo isto? Em primeiro
lugar, que a vida está má para os pobres. Depois que, nisto ou naquilo, vivemos
todos muito ocupados, inclusive na falta de ocupação. Por último, que enquanto,
pela parte que me toca, passo o tempo, como agora e aqui, a acariciar o meu
dilatado egozinho e a fornecer de mim imagens razoavelmente aliciantes, como
estas, existem pessoas bem mais obscuras que, discreta e devotadamente se vão
ocupando de mim e do meu glorioso destino o que, aliás, não é novo. Parece que
tem sido uma constante da História.
Assim sendo, resta-me reconhecer a
solidão moral de uma prática cinematográfica cavada na dupla recusa de ser uma
espécie de carro de aluguer da classe mais favorecida e, o que é mais grave, de
trocar essa profunda exigência por toda e qualquer forma de demagogia
neo-fadista que transporte e venda a miserável ilusão de servir outra coisa.
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