Quando aqui
vos lembrei que Woody Guthrie tinha escrito na sua guitarra “This Machine Kills
Fascists”, veio-me de imediato à memória uma outra história, que também será
interessante contar. Mas serão duas as histórias, embora intimamente ligadas
entre si, como perceberão.
Há muitos,
muitos anos atrás, por ocasião do nascimento das minhas duas filhas mais
velhas, costumava ir passar largas temporadas a casa dos meus sogros de então.
Tanto eu como a minha mulher trabalhávamos relativamente perto e evitávamos,
dessa forma, ter de atravessar duas vezes Lisboa de uma ponta a outra no
período terminal da gravidez e no pós-parto.
Embora na
altura tivesse uma vida sobrecarregada, porque trabalhava de dia e estudava de
noite, nunca deixava de, à chegada a casa, dar dois dedos de conversa com o meu
sogro, Francisco de Freitas Santos. Da sua vastíssima cultura e experiência de
vida, aprendia sempre qualquer coisa.
Um dia, no
meio de uma dessas conversas, desafiei o Freitas Santos a ir comigo ver o
“Ninotchka”, do Ernst Lubitsch, não me lembro se à Cinemateca, à
Gulbenkian ou a qualquer sessão tardia de fim-de-semana mas, para o caso,
também não importa...
Ao contrário
do que era habitual nele, o Freitas, comunista de longa data, reagiu mal
ao convite e disse-me que não tinha
grande pachorra para ir ver filmes reacionários.
Um pequeno
parêntesis para recordar, a quem não viu o filme ou já não se recorda, que, a
traços muito largos, a história gira à volta de um grupo de adoráveis Camaradas
soviéticos que, primeiro sozinhos e depois chefiados pela boa da Greta Garbo, vêm a
Paris, em missão oficial da URSS, para
tentar vender uma coleção de joias “nacionalizadas” durante o período da
Revolução. É escusado dizer que a Chefe se apaixonou perdidamente pelo galã
do filme, Melvin Douglas, e que todos os Camaradas se renderam,
incondicionalmente, aos prazeres do “capitalistic way of live”…
Voltando ao
meu sogro, continuei a conversa e, puxando um cordelinho ali e outro acolá,
rapidamente me apercebi que o bom do Freitas Santos nunca tinha visto o “Ninotchka”
na vida e que a sua reação era consequência de um preconceito que lhe ficara da
época da sua exibição em Portugal.
Em boa
verdade, tal como o “Casablanca” foi durante muitos meses, no Politeama,
pretexto para manifestações anti-fascistas de uma parte da assistência, que se
levantava e cantava a “Marselhesa” em coro com o filme, é bem provável que
parte da Imprensa portuguesa da época se tenha servido do “Ninotchka” para
atacar o regime soviético, provocando aquela reação de repulsa por parte dos
comunistas que o Freitas, quarenta anos depois, ainda tinha bem guardada dentro
de si.
Para o
convencer, lembro-me de lhe ter tentado explicar duas coisas: quem eram os
autores do filme e o contexto muito particular em que este tinha sido escrito e
realizado.
Em relação a
Lubitch, o realizador, ter-lhe-ei explicado que foi um dos primeiros a
emigrar para os EUA, ainda antes da ascensão do Nazismo, tendo obtido enorme
êxito e tendo-se distinguido por ter sido, em Hollywood, um dos que mais
se esforçaram por apoiar, na sua integração e obtenção de trabalho nos Estados
Unidos, os refugiados que fugiam do
regime Nazi, sem qualquer distinção de nacionalidade, credo político ou
religioso. E que era, também (mas isso o Freitas sabia...), o realizador de “To
Be Or Not To Be” (1942) de que ele tanto dizia gostar, juntamente com “O Grande
Ditador”, de Chaplin, as maiores sátiras ao Nazismo alguma vez saídas dos
estúdios americanos...
De Billy
Wilder, responsável pelo cenário do filme em colaboração com Charles Brackett,
ter-lhe-ei talvez dito que tinha fugido ao nazismo em 1933, imediatamente após
o incêndio do Reishtag, e que , juntamente com Frank Tashlin e Jerry Lewis,
terá sido um dos cineastas que, de forma mais caustica e contundente,
criticaram o “american way of live” entre os anos 40 e os anos 70.
Quanto a
Charles Brackett, se tivesse nesta matéria uma posição muito distinta da de
Wlder, dificilmente teria sido o seu fiel companheiro na escrita dos seus
filmes, como o foi até 1950. Só não lhe disse, porque então ainda não
sabia, que Bracket era, na altura da conceção de “Ninotchka”, o
Presidente da “Screen Writers Guild”, uma associação que à época era
considerada um perigoso ninho de esquerdistas...
Esses três
homens (para só falar neles…) eram o que na altura se chamava liberais
anti-fascistas, e nenhum deles poderia ser considerado um “perigoso
reacionário”. E se visto o filme com atenção, o modo de vida “capitalista”
também não fica muito bem tratado em “Ninotchka”...
A realidade é
muito diferente, e aqui terá de entrar o tal contexto...
Estes homens
(e tantos outros como eles, na América daqueles tempos…) estavam muito bem
informados acerca do que se passava na Alemanha. Viam familiares, amigos ou
simples conhecidos ser humilhados, desprovidos dos seus bens, deportados e
tantas vezes assassinados nos campos de concentração e assistiam, com alguma
incredulidade e repulsa, à forma passiva e, segundo eles, conivente como os
Estados Unidos e a União Soviética toleravam esse estado de coisas.
E, na lógica
da então chamada “politica de apaziguamento”, foram dois os acontecimentos
históricos que iriam transformar essa animosidade em ódio, sobretudo em relação
à União Soviética: o Tratado de Munique, de Setembro de 1938, que traçou o
destino da Checoslováquia, que seria invadida seis meses depois, e o Pacto
Germano-Soviético, de Agosto de 1939, que estabeleceu o princípio da “não
agressão” entre as duas potências e legitimou a invasão, por ambas as partes,
da Finlândia e da Polónia.
Ora, gritavam
eles então, não só a União Soviética - a grande defensora da Liberdade - não os
ajudava, como se aliava ao próprio inimigo, com o beneplácito das restantes
grandes potências europeias. E enquanto tudo isto se passava, os Estados Unidos
assobiavam para o lado…
“Ninotchka”
estreou-se nos Estados Unidos em Novembro de 1939, tinha a Guerra começado há
pouco mais de dois meses. Foi um filme pensado, escrito e realizado neste
contexto e só dentro dele conseguirá ser devidamente compreendido.
Não se tratou
de um ataque deliberado aos fundamentos do Estado Soviético nem à ideologia
Comunista, mas sim de um grito de revolta de alguns homens angustiados e
impotentes face à situação que viviam, que não tiveram outra solução senão
expressar-se através da sua Arte.
Recordo-me de
ter gasto todo o meu “latim” em vão e que esta minha tentativa de explicação
não comoveu, na altura, o meu sogro, e muito menos o demoveu da sua ideia de
não me acompanhar ao cinema.
Mas também me
recordo muito bem, com saudade, de, uns anos depois, o ter obrigado a
ver, finalmente, “Ninotchka” na televisão, comigo ao lado. E parece que
ainda o estou a ver, sentado no grande cadeirão ao fundo da pequena sala com o
seu roupão azul escuro, a fazer um enorme esforço para conter, a custo,
as suas sonoras gargalhadas.
É que “Ninotchka”
é uma melhores comédias de sempre do cinema americano.
E assim se
conclui a primeira história.
Passemos à
segunda...
Já vimos como
estava a situação nos Estados Unidos nas vésperas da eclosão da II Grande
Guerra Mundial e quando esta foi, formalmente, desencadeada (1 de Setembro de 1939, na sequência da
invasão da Polónia).
Embora
algumas vozes, sobretudo judeus e uma certa Esquerda não alinhada com o
Partido Comunista Americano, defendessem ser imperativa a participação dos
Estados Unidos no conflito, o Congresso e a maioria da população eram contra
esta intervenção. O Presidente Roosevelt era a favor, mas tinha de se
submeter...
Em coerência
com a orientação seguida por todos os Partidos Comunistas na sequência do Pacto
Germano-Soviético, a posição assumida pela União Soviética era apoiada e o
Partido Comunista Americano era um dos principais defensores da não
intervenção.
Como vimos
nos dois textos anteriores, a canção era, nesses tempos, um excelente veiculo
de propaganda das ideias, e não é de estranhar que um agrupamento Folk
fortemente ligado ao Partido Comunista, chamado “The Almanac Singers”, de
geometria variável mas constituído, em inícios de 1941, em torno dos suspeitos
do costume (Woody Guthrie, Pete Seeger, Josh White, ...), tivesse aproveitado a
oportunidade do lançamento do seu primeiros disco (“Songs for John Doe”,
Maio de 1941) para fazer passar essa mensagem de pacifismo e de isolacionismo
face ao conflito.
Em particular
uma das músicas desse disco, “Billy Boy”, iria tornar-se o verdadeiro
manifesto do “não-intervencionismo”. Vale a pena dar a conhecer
a sua letra:
“Will you
go to the war, Billy boy, Billy boy?
Will you go
to the war, charmin’ Billy?
It’s a long
ways away, they are dying every day
He’s a
young boy and can not leave his mother
Can you use
a bayonet, Billy boy, Billy boy?
Can you use
a bayonet, charming Billy?
No I
haven’t got the skill to murder and to kill...
He’s a
young boy …………………………………………..
Don’t you
want a silver medal, Billy boy, Billy boy?
Don’t you
want a silver medal, charmin’ Billy?
No desire
to I feel to defent Republic Steel...
He’s a
young boy……………………………………………….
Don’t you
want to see the world, Billy boy, Billy boy?
Don’t you
want to see the world, chamin’ Billy?
No it
wouldn’t be much thrill to die for Dupont in Brazi...l
He’s a
young boy………………………………………………….
Girls would
like your uniform, Billy boy, Billy boy
Girls would
like your uniform, charlin’ Billy
They
wouldn’t have much chance to love me with six feet of earth above me...
He’s a
young boy………………………………………………………
Are you
afraid to fight, Billy boy, Billy boy”?
Are you
afraid to fight, charlin’ Billy?
You can
come around me when England’s a democracy...
He’s a
young boy………………………………………………………
Will they
take you from my side, Billy boy, Billy boy?
Will they
take you from my side, charming Billy?
Don’t you
worry Mother dear, I’m a-satyin’over here...
He’s a young boy.………………………………………………………
Nem é preciso
comentar. A letra é bem explícita.
Mas o manifesto
não iria resistir muito mais tempo...
Em 22 de
Junho de 1941, fazendo tábua rasa do Pacto de Não Agressão, a Alemanha invadiu
a União Soviética e a situação alterou-se radicalmente. Da noite para o
dia o Partido Comunista Americano abandonou o isolacionismo e passou a
defender, abertamente, a intervenção no conflito.
E poucos
meses depois, a 7 de Dezembro de 1941, os japoneses atacaram Pearl Harbour e os
Estados Unidos entraram oficialmente na Guerra.
Os
Almanac Singers, claro está, viram-se em muito maus lençóis. Alguns dos
possuidores de “Songs For John Doe” destruíram propositadamente as suas
cópias e os membros do grupo esforçaram-se por encontrar e destruir também
todos os exemplares que ainda se encontravam em vias de distribuição, o que fez
com que este disco se tornasse uma das peças mais raras e mais procuradas
pelos colecionadores de Folk Music.
Embora todas as suas sete canções façam parte da maioria das coletâneas
dos Almanac que têm sido editadas ao longo dos tempos (deixo-vos um exemplo), o
disco em si tornou-se muito difícil de obter.
Mas os
Almanac Singers, embora envergonhados, não pararam e, num ápice, estavam
a lançar um novo disco (“Dear Mr. President”, de Fevereiro de 1942) e a
cantar novas canções anti-Hitler e a favor do esforço de guerra, numa das
piruetas mais famosas da história da Música Folk. A mais célebre dessas
músicas, “Round and Round Hitler’s Grave”, com base na música de “Old
Joe Clark”, de Woody Guthrie, reza assim (vou abreviar, que o texto já vai
longo):
“Now I
wished I had a bushel
Wished I
had a peck
Wished I
had old Hitler
With a rope
around his neck
Hey! round,
round Hitler’s grave
Round,
round we go
Gonna lay
that poor boy down
He won’t
get up no more
Mussolini
won’t last long
Tell you
the reason why
We’re
a-gonna salt his beef
And hang it
up to dry
Hey! round,
round Hitler’s grave
Round,
round we go
…………………………………
………………………………….
Ou seja, em
poucos meses o nosso “charming Billy”, que não sabia usar uma
baioneta, não ambicionava medalhas, não desejava ver o mundo e apenas queria
ficar em casa a tomar conta da mãezinha já se via na Alemanha a enforcar Hitler
e a festejar aos saltos à volta do seu túmulo…!
Mas não foi
apenas esta música. Todo o “Mr. President” surge quase como um pedido de
desculpas em relação a “Songs For John Doe”...
Só outro
exemplo rápido, para não vos incomodar mais: em “Ballad of October 16th”,
de 1941, Roosevelt era massacrado por ter assinado o “Conscription
Bill”, isto é, a Lei que impôs o serviço militar obrigatório aos jovens com
idades compreendidas entre os 21 e os 30 anos, a primeira vez que tal
acontecera nos Estados Unidos em tempos de paz; em “Dear. Mr. President”,
a “talk-song” lançada alguns meses depois, alguém escreve ao Presidente
elogiando e incentivando o seu esforço de guerra e a confessar que até já
parou de discutir com a sogra, porque a ajuda dela também é necessária para se
ganhar a guerra…!:
“………………………………………………
………………………………………………..
Now Mr.
President, we haven’t always agree in the past, I know
But that
ain’t important now
What is
important is what we got to do
We got to
lick Mr. Hitler, and untill we do
Other
things can wait
War means
overtime and higher prices
But we’re
all willing to make sacrifices
Hell, I’d
even stop fithing with my mother-in-aw
‘Cause we
need her too to win the war
……………………………………………………………
……………………………………………………………
So Mr.
President, we’ve got this one big job to do
That’s lick
Mr. Hitler and when we’re through
Let no one
else take his place
To trample
down the human race
So what I want
is you to give a a gun
So we can
hurry and get the job done”
Teria esta
gente de pedir desculpa por todos estes equívocos e por todas estas
“piruetas”...?
Eu julgo que
não…. Erros seus, má fortuna, Amor ardente…
Mas Pete
Seeger entendeu que sim… Na página 22 de “Where Have All the Flowers
Gone – A Singer’s Stories, Songs, Seeds, Robberies”, uma quase
autobiografia através das suas principais canções publicada em 1993, ele
confessa-nos o seguinte:
“At any
rate, today I’ll apologize for a number of things, such as thinking that
Staline was simply a “hard driver” and not a supremely cruel misleader”
Moral da(s)
história(s), porque há sempre uma em todas as histórias: nunca vejas uma
obra de Arte, seja de que natureza for, com os “óculos” de hoje. Para a
compreenderes, terás de a situar no seu espaço, no seu tempo e no seu
modo...
PS:
Existem
muitas coletâneas de música Folk relacionadas com a II Grande Guerra. Deixo-vos
aqui uma das melhores, de fácil acesso
Texto de Luís Miguel Mira
Legenda: fotograma de Ninotchka
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