quarta-feira, 25 de março de 2020

A GRANDE PIRUETA


Quando aqui vos lembrei que Woody Guthrie tinha escrito na sua guitarra “This Machine Kills Fascists”, veio-me de imediato à memória uma outra história, que também será interessante contar. Mas serão duas as histórias, embora intimamente ligadas entre si, como perceberão.

Há muitos, muitos anos atrás, por ocasião do nascimento das minhas duas filhas mais velhas, costumava ir passar largas temporadas a casa dos meus sogros de então. Tanto eu como a minha mulher trabalhávamos relativamente perto e evitávamos, dessa forma, ter de atravessar duas vezes Lisboa de uma ponta a outra no período terminal da gravidez e no pós-parto.
Embora na altura tivesse uma vida sobrecarregada, porque trabalhava de dia e estudava de noite, nunca deixava de, à chegada a casa, dar dois dedos de conversa com o meu sogro, Francisco de Freitas Santos. Da sua vastíssima cultura e experiência de vida, aprendia sempre qualquer coisa.

Um dia, no meio de uma dessas conversas,  desafiei o Freitas Santos a ir comigo ver o “Ninotchka”, do Ernst Lubitsch, não me lembro se à Cinemateca, à Gulbenkian ou a qualquer sessão tardia de fim-de-semana mas, para o caso, também não importa...

Ao contrário do que era habitual nele, o Freitas, comunista de longa data,  reagiu mal ao convite  e disse-me que não tinha grande pachorra para ir ver filmes reacionários.

Um pequeno parêntesis para recordar, a quem não viu o filme ou já não se recorda, que, a traços muito largos, a história gira à volta de um grupo de adoráveis Camaradas soviéticos  que, primeiro sozinhos e depois  chefiados pela boa da Greta Garbo, vêm a Paris, em missão oficial da URSS,  para tentar vender uma coleção de joias “nacionalizadas” durante o período da Revolução. É escusado dizer que a Chefe se apaixonou perdidamente pelo galã  do filme, Melvin Douglas, e que todos os Camaradas se renderam, incondicionalmente, aos prazeres do “capitalistic  way of live”…

Voltando ao meu sogro, continuei a conversa e, puxando um cordelinho ali e outro acolá, rapidamente me apercebi que o bom do Freitas Santos nunca tinha visto o “Ninotchka” na vida e que a sua reação era consequência de um preconceito que lhe ficara da época da sua exibição em Portugal.

Em boa verdade, tal como o “Casablanca” foi durante muitos meses, no Politeama, pretexto para manifestações anti-fascistas de uma parte da assistência, que se levantava e cantava a “Marselhesa” em coro com o filme, é bem provável que parte da Imprensa portuguesa da época se tenha servido do “Ninotchka” para atacar o regime soviético, provocando aquela reação de repulsa por parte dos comunistas que o Freitas, quarenta anos depois, ainda tinha bem guardada dentro de si.

Para o convencer, lembro-me de lhe ter tentado explicar duas coisas: quem eram os autores do filme e o contexto muito particular em que este tinha sido escrito e realizado.


Em relação a Lubitch, o realizador,  ter-lhe-ei explicado que foi um dos primeiros a emigrar para os EUA, ainda antes da ascensão do Nazismo, tendo obtido enorme êxito e tendo-se distinguido por ter sido, em Hollywood,  um dos que mais se esforçaram por apoiar, na sua integração e obtenção de trabalho nos Estados Unidos,  os refugiados que fugiam do regime Nazi, sem qualquer distinção de nacionalidade, credo político ou religioso. E que era, também (mas isso o Freitas sabia...), o realizador de “To Be Or Not To Be” (1942) de que ele tanto dizia gostar, juntamente com “O Grande Ditador”, de Chaplin, as maiores sátiras ao Nazismo alguma vez saídas dos estúdios americanos...  

De Billy Wilder, responsável pelo cenário do filme em colaboração com Charles Brackett, ter-lhe-ei talvez dito que tinha fugido ao nazismo em 1933, imediatamente após o incêndio do Reishtag, e que , juntamente com Frank Tashlin e Jerry Lewis, terá sido um dos cineastas que, de forma mais caustica e contundente, criticaram o “american way of live” entre os anos 40 e os anos 70. 

Quanto a Charles Brackett, se tivesse nesta matéria uma posição muito distinta da de Wlder, dificilmente teria sido o seu fiel companheiro na escrita dos seus filmes, como o foi até 1950.  Só não lhe disse, porque então ainda não sabia, que Bracket era, na altura da conceção de “Ninotchka”, o Presidente da “Screen Writers Guild”, uma associação que à época era considerada um perigoso ninho de  esquerdistas... 

Esses três homens (para só falar neles…) eram o que na altura se chamava liberais anti-fascistas, e nenhum deles poderia ser considerado um “perigoso reacionário”. E se visto o filme com atenção, o modo de vida “capitalista” também não fica muito bem tratado em “Ninotchka”...

A realidade é muito diferente, e aqui terá de entrar o tal contexto...

Estes homens (e tantos outros como eles, na América daqueles tempos…) estavam muito bem informados acerca do que se passava na Alemanha. Viam familiares, amigos ou simples conhecidos ser humilhados, desprovidos dos seus bens, deportados e tantas vezes assassinados nos campos de concentração e assistiam, com alguma incredulidade e repulsa, à forma passiva e, segundo eles, conivente como os Estados Unidos e a União Soviética toleravam esse estado de coisas.

E, na lógica da então chamada “politica de apaziguamento”, foram dois os acontecimentos históricos que iriam transformar essa animosidade em ódio, sobretudo em relação à União Soviética: o Tratado de Munique, de Setembro de 1938, que traçou o destino da Checoslováquia, que seria invadida seis meses depois, e o Pacto Germano-Soviético, de Agosto de 1939, que estabeleceu o princípio da “não agressão” entre as duas potências e legitimou a invasão, por ambas as partes, da Finlândia e da Polónia.

Ora, gritavam eles então, não só a União Soviética - a grande defensora da Liberdade - não os ajudava, como se aliava ao próprio inimigo, com o beneplácito das restantes grandes potências europeias. E enquanto tudo isto se passava, os Estados Unidos assobiavam para o lado…
Ninotchka” estreou-se nos Estados Unidos em Novembro de 1939, tinha a Guerra começado há pouco mais de dois meses. Foi um filme pensado,  escrito e realizado neste contexto e só dentro dele conseguirá ser devidamente compreendido.

Não se tratou de um ataque deliberado aos fundamentos do Estado Soviético nem à ideologia Comunista, mas sim de um grito de revolta de alguns homens angustiados e impotentes face à situação que viviam, que não tiveram outra solução senão expressar-se através da sua Arte.
Recordo-me de ter gasto todo o meu “latim” em vão e que esta minha tentativa de explicação não comoveu, na altura, o meu sogro, e muito menos o demoveu da sua ideia de não me acompanhar ao cinema.

Mas também me recordo muito bem, com saudade,  de, uns anos depois, o ter obrigado a ver, finalmente, “Ninotchka” na televisão, comigo ao lado. E parece que ainda o estou a ver, sentado no grande cadeirão ao fundo da pequena sala com o seu roupão azul escuro, a fazer um enorme esforço para conter, a custo,  as suas sonoras gargalhadas.

É que “Ninotchka” é uma melhores comédias de sempre do cinema americano.


E assim se conclui a primeira história.

Passemos à segunda...

Já vimos como estava a situação nos Estados Unidos nas vésperas da eclosão da II Grande Guerra Mundial e quando esta foi, formalmente,  desencadeada  (1 de Setembro de 1939, na sequência da invasão da Polónia).

Embora algumas vozes, sobretudo judeus e uma certa  Esquerda não alinhada com o Partido Comunista Americano, defendessem ser imperativa a participação dos Estados Unidos no conflito, o Congresso e a maioria da população eram contra esta intervenção. O Presidente Roosevelt era a favor, mas tinha de se submeter...

Em coerência com a orientação seguida por todos os Partidos Comunistas na sequência do Pacto Germano-Soviético, a posição assumida pela União Soviética era apoiada e o Partido Comunista Americano era um dos principais defensores da não intervenção.

Como vimos nos dois textos anteriores, a canção era, nesses tempos, um excelente veiculo de propaganda das ideias, e não é de estranhar que um agrupamento Folk fortemente ligado ao Partido Comunista, chamado “The Almanac Singers”, de geometria variável mas constituído, em inícios de 1941, em torno dos suspeitos do costume (Woody Guthrie, Pete Seeger, Josh White, ...), tivesse aproveitado a oportunidade do lançamento do seu primeiros disco (“Songs for John Doe”, Maio de 1941) para fazer passar essa mensagem de pacifismo e de isolacionismo face ao conflito.

Em particular uma das músicas desse disco, “Billy Boy”, iria tornar-se  o verdadeiro manifesto do “não-intervencionismo”. Vale a pena dar a conhecer a sua letra:

“Will you go to the war, Billy boy, Billy boy?
Will you go to the war, charmin’ Billy?
It’s a long ways away, they are dying every day
He’s a young boy and can not leave his mother

Can you use a bayonet, Billy boy, Billy boy?
Can you use a bayonet, charming Billy?
No I haven’t got the skill to murder and to kill...
He’s a young boy …………………………………………..

Don’t you want a silver medal, Billy boy, Billy boy?
Don’t you want a silver medal, charmin’ Billy?
No desire to I feel to defent Republic Steel...
He’s a young boy……………………………………………….

Don’t you want to see the world, Billy boy, Billy boy?
Don’t you want to see the world, chamin’ Billy?
No it wouldn’t  be much thrill to die for Dupont in Brazi...l
He’s a young boy………………………………………………….

Girls would like your uniform, Billy boy, Billy boy
Girls would like your uniform, charlin’ Billy
They wouldn’t have much chance to love me with six feet of earth above me...
He’s a young boy………………………………………………………

Are you afraid to fight, Billy boy, Billy boy”?
Are you afraid to fight, charlin’ Billy?
You can come around me when England’s a democracy...
He’s a young boy………………………………………………………

Will they take you from my side, Billy boy, Billy boy?
Will they take you from my side, charming Billy?
Don’t you worry Mother dear, I’m a-satyin’over here...
He’s a young boy.………………………………………………………

Nem é preciso comentar. A letra é bem explícita.

Mas o manifesto não iria resistir muito mais tempo...

Em 22 de Junho de 1941, fazendo tábua rasa do Pacto de Não Agressão, a Alemanha invadiu a União Soviética  e a situação alterou-se radicalmente. Da noite para o dia o Partido Comunista Americano abandonou o isolacionismo e passou a defender, abertamente, a intervenção no conflito.

E poucos meses depois, a 7 de Dezembro de 1941, os japoneses atacaram Pearl Harbour e os Estados Unidos entraram oficialmente na Guerra.

 Os Almanac Singers, claro está, viram-se em muito maus lençóis. Alguns dos possuidores de “Songs For John Doe” destruíram propositadamente as suas cópias e os membros do grupo esforçaram-se por encontrar e destruir também todos os exemplares que ainda se encontravam em vias de distribuição, o que fez com que este disco se tornasse  uma das peças mais raras e mais procuradas pelos colecionadores de Folk Music.  Embora todas as suas sete canções façam parte da maioria das coletâneas dos Almanac que têm sido editadas ao longo dos tempos (deixo-vos um exemplo), o disco em si tornou-se muito difícil de obter.  

Mas os Almanac Singers, embora envergonhados,  não pararam e, num ápice, estavam a lançar um novo disco (“Dear Mr. President”, de Fevereiro de 1942)  e a cantar novas canções anti-Hitler e a favor do esforço de guerra, numa das piruetas mais famosas da história da Música Folk.  A mais célebre dessas músicas, “Round and Round Hitler’s Grave”, com base na música de “Old Joe Clark”, de Woody Guthrie, reza assim (vou abreviar, que o texto já vai longo):

“Now I wished I had a bushel
Wished I had a peck   
Wished I had old Hitler
With a rope around his neck

Hey! round, round Hitler’s grave
Round, round we go
Gonna lay that poor boy down
He won’t get up no more

Mussolini won’t last long
Tell you the reason why
We’re a-gonna salt his beef
And hang it up to dry

Hey! round, round Hitler’s grave
Round, round we go
…………………………………
………………………………….

Ou seja, em poucos meses o nosso “charming Billy”,  que não sabia usar uma baioneta, não ambicionava medalhas, não desejava ver o mundo e apenas queria ficar em casa a tomar conta da mãezinha já se via na Alemanha a enforcar Hitler e  a festejar aos saltos à volta do seu túmulo…!  

Mas não foi apenas esta música. Todo o “Mr. President” surge quase como um pedido de desculpas em relação a “Songs For John Doe”...


Só outro exemplo rápido, para não vos incomodar mais: em “Ballad of October 16th”, de 1941,  Roosevelt era massacrado por ter assinado o “Conscription Bill”, isto é, a Lei que impôs o serviço militar obrigatório aos jovens com idades compreendidas entre os 21 e os 30 anos, a primeira vez que tal acontecera nos Estados Unidos em tempos de paz; em “Dear. Mr. President”,  a “talk-song” lançada alguns meses depois, alguém escreve ao Presidente elogiando e incentivando o seu esforço de guerra  e a confessar que até já parou de discutir com a sogra, porque a ajuda dela também é necessária para se ganhar a guerra…!:

“………………………………………………
………………………………………………..
Now Mr. President, we haven’t always agree in the past, I know
But that ain’t important now
What is important is what we got to do
We got to lick Mr. Hitler, and untill we do
Other things can wait
War means overtime and higher prices
But we’re all willing to make sacrifices
Hell, I’d even stop fithing with my mother-in-aw
‘Cause we need her too to win the war
……………………………………………………………
……………………………………………………………
So Mr. President, we’ve got this one big job to do
That’s lick Mr. Hitler and when we’re through
Let no one else take his place
To trample down the human race
So what I want is you to give a a gun
So we can hurry and get the job done”

Teria esta gente de pedir desculpa por todos estes equívocos e por todas estas “piruetas”...?
Eu julgo que não…. Erros seus, má fortuna, Amor ardente…

Mas Pete Seeger entendeu que sim… Na página 22 de  “Where Have All the Flowers Gone – A Singer’s Stories, Songs, Seeds, Robberies”, uma quase autobiografia através das suas principais canções publicada em 1993, ele confessa-nos o seguinte:  

“At any rate, today I’ll apologize for a number of things, such as thinking  that Staline was simply a “hard driver” and not a supremely cruel misleader”

Moral da(s) história(s), porque há sempre uma em todas as histórias:  nunca vejas uma obra de Arte, seja de que natureza for, com os “óculos” de hoje. Para a compreenderes, terás de a situar no seu espaço, no seu tempo e no seu modo... 

PS: 
Existem muitas coletâneas de música Folk relacionadas com a II Grande Guerra. Deixo-vos aqui uma das melhores, de fácil acesso

Texto de Luís Miguel Mira

Legenda: fotograma de Ninotchka

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