sábado, 28 de março de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS



Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram publicados.

IRISH OAK


Tanto quanto me lembro comecei a fumar cachimbo pelos meus quinze anos.

Por curiosidade, por uma qualquer maneira de querer ser diferente, diferente dos que fumavam cigarros. Hoje fumo cachimbo por prazer. Fumar cachimbo é uma maneira de estar, filosófica, assim como acariciar gatos. Cada vez que pego num cachimbo para o fumar, sinto sempre a tal diferença.

As minhas primeiras marcas de tabaco foram os incontornáveis “Mayflower”, o “Clan” o “Gama”. Mais tarde fixei-me no “Revelation”, um agradável “Smoking Mixture” da Philip Morris e que nos pacotes em lugar do estúpido “Fumar Mata” tinha “it’s mild and mellow”. Nos finais dos anos 70 deixaram de o fabricar e mais tarde descobri o “Captain Black”.

Conheci-o através do agente da "Aminter" em Ponta Delgada. Na primeira vez que apareceu no escritório deixou um inebriante perfume, que mais tarde o Paulo Rodrigues definiu como sabor a caramelo. Na altura não se vendia em Lisboa, mas o Nascimento lembrou-se que tinha um cunhado a trabalhar da Base aérea das Lajes e passei a receber latas de meio quilo de “Captain Black” a um preço “five Stars”. Entretanto passou a vender-se em Lisboa.

Um dia ao ler um livro do Jorge Listopad dei com uma marca de tabaco de cachimbo que ele achava muito bom, mas, lamentava-se, que só se vendia nos "free shops "dos aeroportos.

Como o Miguel viaja muito, pedi-lhe que me tentasse arranjar uma embalagem.

Nunca o encontrou, nem em Paris, nem nas "free shops” dos diversos aeroportos por onde passava.

Mas um dia surpreendeu-me com um saquinho com três latas de “Irish Oak”.

Tinha-o descoberto numa pequena loja de tabacos em Bruxelas, junto à estação de caminhos de ferro.

Pode ser que ele, um dia, se disponibilize, para nos contar, aqui, os pormenores.

Há um bom par de anos, em conversa com o Miguel Alves, lamentava-se das suas cada vez maiores dificuldades em comprar “Captian Black” em Lisboa. Disse-lhe que, depois do encerramento das tabacarias no Rossio, passei a comprá-lo numa loja do Centro Comercial Vasco da Gama.

Aproveitei para lhe contar a história com o “Irish Oak” e falar do Jorge Listopad.

A história chama-se “Pernoitar” e encontra-se no livro Em Chinatown com a Rosa:

É esta a história:

«Emergiu da noite, não, eram dois, sim, emergiram da noite, mas como se ela não existisse, até àquele momento eu estava sentado sozinho na esplanada com as cadeiras empilhadas e arrumadas, a noite e ninguém, estava sentado numa cadeira branca de abrir e fechar, a única que não fora presa pela corrente, fumava cachimbo, “Irish Oak”, o tabaco que outrora Graham Greene me mandara com um cachimbo “Peterson”, uma oferta por tê-lo acompanhado, eu ou a Clara ou nós os dois, pela cidade ainda alvoroçada, por tê-lo apresentado às novas personalidades, ter-lhe aberto as portas das instituições e dos clubes revolucionários, habituei-me ao “Irish Oak” nem sempre fácil de arranjar, nem mesmo no “free shop” dos aeroportos, estou sentado e penso tabaco, tabaco, o fumar divino, paz e sossego, stop, Virgem Maria, arco do céu, se eu quisesse ouviria o mar, as gaivotas estão a dormir, eis senão quando emergiu da noite à noite, mas afinal eram dois, ele sentou-se no muro e disse boa noite, o que em Portugal não significa que se vá dormir já, mas algo como noite acordada e que seja boa, que a vida continue na escuridão.
Interromperam o meu fluxo silencioso de palavras e o navegar em ideias aproximadamente formadas pelas palavras, tal como agora interrompi a frase anterior que não tinha fim. Cumprimentei-o, pois, com essa mesma boa noite à portuguesa, procurei e no bolso encontro o isqueiro e esperei, esperei enquanto aguardava. Sentou-se no muro. Ela ficou ao pé, afastou-se. O cachimbo era excelente, embora seja evidente que um cachimbo aceso pela segunda vez deixa de ser tão cheiroso e saboroso. “Irish Oak”. Na tampa da caixinha redonda de lata um carvalho verde, um quadro que no escuro tem de ser imaginado. Ao longe as luzes baças de um barco de pescadores. A oscilarem no ar incerto. Como numa narrativa.
- Rouba-se muito por aqui, aventurou ele.
- Onde, aqui?
- Em Portugal.
Era uma frase muito sintética. Inusitadamente sintética. Eu não estava acostumado a isso.
- Fui seu aluno, senhor professor, disse depois.
No dia anterior eu tinha estado com os pescadores. Tinha percebido que toda a pesca é um conflito. Com o mar, com as redes, com a organização do próprio trabalho, com o sistema da entreajuda.
- Professor de quê? Perguntei baixinho, devagar, sem quase ter perguntado. Algures, alguém pôs uma motocicleta em marcha.
- Foi há muito tempo.
Ninguém me dirá nada de novo, afirmou Zaratustra. Não quero ouvir nada de novo, eu. Mas quem é o eu?. Quem é Zaratustra? Cada dia nos aproxima mais. Mas aproxima de quem? De quê?
Não tinham onde dormir. Dormiram no meu quartinho. Coisas que se curam, que não se curam. Eu tinha tempo. O tempo ainda me pertencia.»

Texto publicado em 28 de Fevereiro de 2010

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