segunda-feira, 23 de março de 2020

LITTLE RED SONG BOOK


Industrial Workers of the World (IWW) é o nome de um sindicato que foi constituído em 1905 em Chicago e que, embora tenha tido os seus tempos áureos nas primeiras décadas desse século, conseguiu chegar aos dias de hoje. Os seus membros eram conhecidos por “wobblies”.
Na altura da sua constituição este sindicato surgiu com duas características que claramente o diferenciavam do sindicalismo da sua época: a de ser um sindicato único (“One Big Union”) que integrava todos os sectores da atividade económica  e a de assumir, na sua ação quotidiana,  objetivos claramente revolucionários, mediante uma forte ligação aos movimentos socialistas e anarquistas seus contemporâneos.

Mas o IWW tinha, ainda, uma outra característica, que é aquela que agora aqui mais me interessa: a utilização de canções como forma de mobilização coletiva dos seus membros durante as greves, concentrações e outras formas de luta.

Embora algumas fossem originais, uma grande parte dessas canções eram músicas sobejamente conhecidas de toda a população, a que se juntavam novas letras adaptadas às exigências da luta sindical. E para essa adaptação dispunham, entre os próprios membros do sindicato, de letristas de génio, como era a caso do sueco Joseph Hillstrom (o grande Joe Hill) e de Ralph H. Chaplin.

Mas se as músicas eram de todos conhecidas, nem sempre o mesmo sucedia com as letras. Para colmatar esse problema os “wobblies” editaram em 1909 um pequeno livrinho com as letras de cada canção, cuja reduzida dimensão (15 cm x 10 cm) fora propositadamente concebida para poder ser colocado no bolsinho dos fatos de trabalho. Chamaram-lhe, nessa primeira edição, “IWW Songs”, a que acrescentariam, em edições posteriores, a frase “para atiçar as chamas do descontentamento” (“To Fan the Flames of Discontent”)! 

Este livrinho, que passou a ser conhecido como o “Little Red Songbook”, teve mais de trinta edições a partir dessa altura, a última das quais em 2010.

O exemplar que aqui vos mostro e que tenho o prazer de  possuir na minha biblioteca Folk (é fácil obtê-lo na Amazon por muito pouco dinheiro…) é um “facsimile” da edição de 1923.
É uma delícia folhearmos este livro e, quando as conhecemos, comparar estas canções com as versões originais.

Aqui vos deixo três exemplos:

JOHN BROW’S BODY / BATTLE HYMN OF THE REPUBLIC / SOLIDARITY FOREVER
De todas as canções dos “wobblies”, “Solidarity Forever” é, talvez, a mais conhecida.
Teve origem em “John Brown’s Body”, canção dedicada ao abolicionista e leader da luta contra a escravatura John Phillip Brown.

John Brown é considerado o “pai do terrorismo na América”. Conseguiu juntar a si um número significativo de homens e, ainda antes do início da Guerra Civil, desencadeou uma série de ações de luta armada contra os  esclavagistas do Sul, as mais célebres das quais foram o “Massacre de Pottawatomie”, em 1856, e o ataque a um arsenal de armas em Harpers Ferry, em 1859, com o intuito de roubar as armas e distribuí-las pelos escravos. Este último ataque fracassou e John Brown foi preso e enforcado poucos meses depois, em Dezembro de 1859.
Os historiadores estão hoje de acordo em reconhecer que a luta de John Brown e dos seus homens, muito divulgada na época, foi determinante para a eclosão da Guerra Civil.
A origem da canção é conhecida. A fama de John Brown era grande por essa altura e um grupo de soldados da União  sitiados em Fort Warren, perto de Boston, teve a ideia de lhe  dedicar uma música que acabou por ser uma obra coletiva cantada pela primeira vez num hastear de bandeira no dia 12 de Maio de 1861. 


A letra era original mas partes da música, sobretudo o refrão, foram inspiradas em “gospel songs” já existentes desde o início do Séc. XIX.  A partir daí “John Brown’s Body” tornar-se-ia um dos mais importantes hinos militares durante toda a Guerra Civil.

Reza assim a letra da canção, que a música toda a gente conhece:

“John Brown’s body lies in a moulding in the grave
John Brown’s body lies in a moulding in the grave
John Brown´s body lies in a moulding in the grave
But his soul goes marching on

Glory, glory hallelujah
Glory, glory hallelujah
Glory, glory hallelujah
And his soul goes marching on

John Brown died to put and end to slavery
John Brown died to put and end to slavery
John Brown died to put and end to slavery
And his soul goes marching on

Glory, glory hallelujah
…………………………………
………………………………….”

Mas a memória de John Brown  incomodava muita gente e havia quem dissesse que era uma pena uma música tão bonita ter um uma letra tão simplista e, ainda por cima, dedicado a um perigoso fora-da-Lei responsável pela morte de tantos inocentes...

E terá sido mais ou menos isto que a religiosa e  abolocionista suave Julia Ward Howe e o Reverendo James Freeman Clark comentaram entre si quando ouviram pela primeira vez os soldados da União cantar a música, em finais de 1861, tendo o padre sugerido à senhora que, já que tinha tanto jeito para a escrita, tentasse escrever uma nova letra para a mesma música.
Julia Ward Howe não se fez esperar muito e em Janeiro de 1862 a sua letra seria publicada pela primeira vez. Chamava-se “Battle Hymn of the Republic” e iria tornar-se um enorme sucesso popular, um dos hinos patrióticos de maior sucesso na América cuja popularidade chegaria a suplantar o próprio hino nacional americano (o “Star-spangled  Banner”, escrito em 1814 mas apenas tornado, oficialmente,  hino nacional por decisão do Congresso de 1931).

A letra de “Battle Hymn” é complexa, repleta de referências bíblicas, e deixo-vos apenas o início para não vos massacrar:

“My eyes have seen the glory of the coming of the Lord
He is trampling out the vintage where the grapes of wrath are stored
He hath loosed the fateful lightning of this terrible swift sword
His truth is marching on

Glory, glory hallelujah
Glory, glory hallelujah
Glory, glory hallelujaj
His truth is marching on

………………………………………
……………………………………….”


A curiosidade desta história é que terá sido das poucas vezes, senão a única, em que um “clássico” se inspirou numa música “de intervenção”, digamos assim, para simplificar. Por norma foi o inverso que aconteceu…

Mas umas décadas mais tarde os malvados radicais voltariam à carga, e o sindicalista Ralph Chaplin escreveria, em 1915, sob a mesma música, “Solidarity Forever”, uma das mais importantes “Union songs” da América e do Mundo, adotada não só pelos “wobblies”, mas também por muitos outros sindicatos ao longo dos anos que se seguiram.

A letra de “Solidarity” também é comprida, pelo que vos deixo apenas o início:

“When the Union’s inspiration through the worker’s blood shall run
There can be no power greater anywhere beneath the sun
Yet what force on earth is weaker than the feeble strength of one?
But the Union makes us strong

Solidarity forever
Solidarity forever
Solidarity forever
But the Union makes us strong”

HOLD THE FORT FOR I AM COMING / HOLD THE FORT

Phil Paul Bliss (1836-1876) foi um evangelista e também compositor e cantor gospel de grande sucesso durante o Séc. XIX.

Em 1864, durante a Guerra Civil, uma guarnição da União estava cercada sob um forte ataque dos Confederados e quase a ser massacrada. Ao longe, uma bandeira branca no alto de um monte levam-nos a perceber que os reforços não estavam longe e um tal Comandante Sherman, que chefiava esses reforços, faz-lhes chegar a mensagem “Hold fast. We are coming”. A mensagem encorajou os sitiados que aguentaram até à chegada dos reforços e os Confederados acabaram por ser derrotados.

Uns anos mais tarde Phil Bliss ouviu falar desta história e, em 1870,  sobre ela compôs mais um dos seus já então célebres hinos religiosos. A mensagem  (digo eu, que não sou cristão…) é a de que devemos ter força, fé e perseverança nesta nossa vida terrena, porque algures a Salvação chegará…

A letra é assim (vou abreviar muito…):

“Ho, my comrades, see the signal, waving in the sky
Reinforcements now appearing, Victory is nigh
“Hold the fort, for I am coming”, Jesus signals still
Wave the answer back to Heaven, “by Thy grace we will””  

Décadas mais tarde (parece que não é possível identificar nem a data nem o autor da nova letra…), sob o título “Hold the Fort”, os “wobblies” começaram a cantar esta nova versão  nos seus “meetings”:

“We meet today in Freedom’s cause
And raise our voices high
We’ll join our hands in Union strong
To battle or to die

Hold the fort for we are coming
Union men be strong
Side by side we battle onward
Victory will come 

Look my Comrades, see the Union
Banners waving high.
Reinforcements now appearing,
Victory is nigh.

Hold the fort for we are coming
……………………………………………….

See our numbers still increasing
Hear the bugles blow
By our Union we shall triumph
Over rever foe

Hold the fort for we are coming
………………………………………………..

Fierce and long the battle rages
But we will not fear.
Help will come whene’er it’s needed
Cheer, my Comrades, cheer

Hold the fort for we are coming
…………………………………………………


IN THE SWEET BY AND BY / THE PREACHER AND THE SLAVE
In The Sweet By And By” é um belíssimo “standard” da música Gospel americana publicado em 1868, com letra de S. Fillmore Bennet e música de Joseph P. Webster. Recomendo-a vivamente a quem não a conhecer, seja Crente, ou não (há uma boa versão do Johnny Cash).

A sua letra é a seguinte:

“There’s a land that is faster than day
And by faith we can see it afar
For the Father waits over the way
To prepare us a dwelling place there

In the sweet by and by
We shall meet in that beautiful shore
In the sweet by and by
We shal meet in that beautiful shore

We shall sing on that beautiful shore
The melodious songs of the blessed
And our spirits shall sorrow no more
Not a sight for the blessing to rest

In the sweet by and by
…………………………………..

To our bountiful Father above
We will offer our tribute of praise
For the glorious gift of His love
And the blessing that hallow our days”

In the sweet by and by
…………………………………..”

Joel Emmanuel Hagglund nasceu na Suécia em 1879 e emigrou para os Estados Unidos aos 23 anos, tendo aì  mudado o seu nome para Joseph Hillstrom.

Na América foi um trabalhador migrante, no início em Nova Iorque, depois no Ohio e, finalmente, por aí fora até à Califórnia.

Mas nos seus últimos anos de vida  já não era Joseph Hillstrom, mas sim o Joe Hill, que conhecemos do filme que lhe dedicou o também sueco Bo Widerberg  e da canção com que o homenageou Earl Robinson, popularizada nos anos 70 pela voz de Joan Baez:

“I dreamed I saw Joe Hill last night
Alive as you and me
Says I “But Joe you’re ten years dead”
“I never died”,  says he” 

From San Diego up to Maine
In every mine and mill
Where working folks defend their rights
It’s there you  find Joe Hill”


Este anarco-sindicalista, que se alistou-se na IWW em 1910, era, também, um compositor e letrista de exceção e muitas das suas canções integram o património das chamadas “Union Songs” (“The Rebel Girl”,  “Workers of the World, Awaken!”,The Tramp”, “The White Slave”, “There is Power in a Union”, e tantas outras).

Em 1911 o anticlerical Joe Hill pegou na música de “In the Sweet By And By” e acrescentou-lhe uma nova e satírica letra, criticando todos aqueles que defendiam que se o Homem se sujeitar na Terra, pacificamente, a todos os sacrifícios e privações que lhe forem impostos, dele será o Reino dos Céus…

Chamou a essa canção “The Preacher and the Slave”, e a sua letra é a seguinte (vou abreviar):

“Long-haired  preachers come out every night,
Try to tell you what’s wrong and what’s right
But when asked how ‘bout something to eat
They will answer with voices so sweet:
You will eat, bye and bye,
In that glorious land above the sky
Work and pray, live on hay,
You’ll get pie in the sky when you die

…………………………………………………………
…………………………………………………………

If you fight hard for children and wife -
Try to get something good in this life –
You’re a sinner and bad man, they tell
When you die you will sure go to hell

You will eat, bye and bye,
……………………………………….
………………………………………..

Working men of all countries, unite
Side by side we for freedom will fight
When the world and it’s wealth we have gained
To the grafters we’ll sing this refrain:

You will eat, bye and bye,
When you’ve learned how to cook and to fry
Chop some wood, ‘twill do you good,
And you’ll eat in the sweet bye and bye

Uff!

Parece que cheguei ao fim, mas duvido que vos tenha conseguido transmitir uma pequena parte que seja do prazer que retiro destas andanças.

Resta-me dizer-vos que se desejarem ir mais longe, há imensas coletâneas facilmente disponíveis na Amazon e aqui vos deixo alguns exemplos da minha coleção.

Muitas destas canções também se encontrarão facilmente no Youtube. Pessoalmente prefiro as versões mais antigas dos Almanac Singers, Pete Seeger, Joe Glazier ou Cisco Houston. Mas também há excelentes versões mais recentes, de Utah Phillips e Billy Bragg, por exemplo.

Luís Miguel Mira

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