terça-feira, 17 de março de 2020

RED RIVER VALEY


É sabido que isto de contar histórias da Folk Music é como as cerejas e que, atrás de uma, outras nos vêm de imediato à memória. 

Este é mais um exemplo do “Folk process” de que vos falei anteriormente, isto é, da capacidade das canções sobreviverem à erosão dos tempos, mediante novas letras adaptadas a novas realidades. Mas, como exemplo, era descabido no texto anterior, e por isso decidi dedicar-lhe um texto autónomo.

Red River Valley” é uma das canções tradicionais americanas de que mais gosto.

Tal como tantas outras, a sua origem é difícil de estabelecer e a sua autoria impossível de atribuir. Parece ter nascido no Canadá na segunda metade do Séc. XIX e daí partido para os Estados Unidos, onde se tornaria uma das “cowboy songs” mais conhecidas.

A sua primeira gravação de sucesso data de 1927 e deve-se a Riley Pucket, embora com uma letra substancialmente diferente daquela que acabaria por ficar para a posteridade e cujo refrão quase toda a gente conhece: 

“From this valley they say you are going
We will miss your bright eyes and sweet smile
For they say you are taking the sunshine
That has brightened our pathway a while

Come and sit by my side if you love me
Do not hasten to bit me adieu
But remember the Red River valley
And the cowboy that has loved you so true” 

É uma canção nostálgica de despedida.  De um Amor, de uma Vida, de um Amigo,  de um pedacinho de Felicidade que um dia tivemos e se nos escapou por entre os dedos, sem que soubéssemos muito bem porquê...

Nas “Vinhas da Ira”, do velho Ford, Tom Joad/Henry Fonda canta-a à sua mãe enquanto dança com ela e o rosto da pobre senhora transfigura-se de imediato, como se a música fosse, por si só, um mau presságio daquilo que se iria seguir.

Leonard Cohen gostava muito de “Red River Valley” e cantou-a muitas vezes ao vivo. 
No documentário “Songs From the Life of L.C.”,  ele  é acompanhado pela equipa de filmagens de regresso à Ilha de Hydra, onde havia sido feliz com Marianne Ihlen. Vemo-lo a subir as estreitas  ruelas do povoado, entrar na pequena casa caiada a branco, dirigir-se àquele quartinho que está na contracapa de “Songs From a Room”,  abrir a gaveta da mesma cómoda e lá encontrar uma velha harmónica. Leva-a aos lábios e o que toca ele…? “Red River Valley”, como quem diz, mais uma vez,  “so long Marianne”… 

São inúmeras as gravações conhecidas de “Red River Valley”, do classissismo de Joe Stafford ao “kitsch” de Slim Whitman, passando pela versão mais sóbria de Ed McCurdy, que alguns de vós se recordarão ser a música com que, habitualmente, encerrava as hostilidades nas noites de jantar em minha casa, seguidas  de serão musical.

Mas falar-vos de “Red River Valley”  foi uma mera introdução para o que se vai seguir…

A batalha de Jarama, que teve lugar às portas de Madrid entre 6 e 27 de Fevereiro de 1937, foi uma das mais sangrentas de toda a Guerra Civil Espanhola. Entre mortos e feridos, Nacionalistas e Republicanos sofreram um número muito significativo de baixas numa carnificina em que, no final, nenhuma das partes logrou obter qualquer vantagem sobre a outra.

Do lado dos Republicanos estavam as Brigadas Internacionais constituídas por, entre outros,  voluntários americanos (a célebre Abraham Lincoln Brigade), ingleses, irlandeses e soviéticos.
Todos sofreram fortes baixas, mas o batalhão americano ficou reduzido a um terço dos cerca de 500 homens iniciais, pelo que esta batalha teve um enorme impacto na América, sobretudo nos meios anti-fascistas afetos ao Partido Comunista, de onde provinham uma boa parte desses voluntários de guerra.


Mas, curiosamente, não foi um americano, mas sim um inglês de nome Alex McDade que pegou na música de “Red River Valley” e lhe fez uma nova letra alusiva à batalha de Jarama, a que chamou “Jarama Valley”, que rapidamente se popularizou entre os soldados  Republicanos.

McDade foi ferido em Jarama e acabaria por morrer noutra batalha, alguns meses depois, sem ter podido assistir à evolução que a letra da sua canção iria sofrer.

Após o final da Guerra, em muitos países fora de Espanha, grupos de antigos combatentes continuaram a encontrar-se com regularidade para homenagear os desaparecidos em combate, relembrar as histórias da guerra  e cantar as suas canções,  e à medida que o  faziam a letra ia mudando, de país para país.

Em 1944 o grande Moses Ash, pai da Editora Folkways, resolveu juntar um grupo de músicos à volta de Pete Seeger e gravar aquilo a que chamou “Songs of the Lincoln Brigade” (estão, integralmente, numa das coletâneas que vos mostro).

 “Jarama Valley” faz parte desse conjunto de canções e nessa primeira vez que foi gravada nos Estados Unidos, foi-o com a seguinte letra:

“There’s a valley in Spain called Jarama
It’a a place that we all know so well
It was there that we gave of our manhood
Where so many of our brave comrades fel

We are proud of the Lincoln Battalion
And the fight for Madrid that they made
There we fought like the sons of the people
As part of the Fifteenth Brigade  

Now we’re far from that valley of sorrow
But it’s memory we never will Forget
So before we conclude this reunion
Let us stand to our glorious dead”

Mas nos Estados Unidos a coisa ainda não iria ficar por aqui…
Woody Guthrie, o mais radical dos radicais e o homem que fez inscrever na sua guitarra a frase “This Machine Kills Fascists”, escreveu uma nova versão,  na qual os fascistas já não eram apenas os de Espanha…:


“There’s a valley in Spain called Jarama
It’s a place that we all know so well
It was there that we fought against the fascists
We saw a peacefull valley turn to hell

From that valley they say we are going
But don’t hasten to bit us adieu
Even though we lost the battle of Jarama
We’ll set this valley free before we’re through

We were men of the Lincoln Battalion
We’re proud of the fight that we made
We know that you people of the valley
Will remember our Lincoln Brigade

From this valley they say we are going
…………………………………………………………..

You will never find peace with these fascists
You will never find friends such as we
So remenber that valley of Jarama
And the people that’ll set this valley free

From this valley they say we are going
……………………………………………………………

All this world is like this valley of Jarama
So green and so bright and so fair
No fascists can dwell in our valley
Nor breathe in our new freedom’s air

(Que belas intenções, Querido Woody…! Mas haverias de regressar a esta Terra para veres como isto está…)

Em 2003 a Appleseed Recordings editou uma nova colectânea de “Songs of the Spanish Civil War” (segunda coletânea que vos mostro) em que “Jarama Valley” é cantada por Arlo, filho de Woody, sob uma interessante narração de Pete Seeger.  A letra é uma mistura das duas que atrás referi, com a curiosidade de Arlo ter cortado da canção do pai todas as referências a “fascistas”, o que deve ter levado o velho Woody a dar duas voltas no túmulo…! 

Os anos foram passando e durante a Guerra do Vietname, onde também existia um “Red River”, surgiu, num batalhão da Força Aérea Americana, uma nova versão de “Red River Valley” adaptada a esses tempos, com a seguinte letra (existe um pequeno filme no Youtube onde se pode ouvir a música, mas desconheço a existência de qualquer gravação):

“Come and sit by my side at the briefing
We will sit there and tickle the beads
Then we’ll head for the Red River Valley
And today I’ll be flying teak lead

To the valley he said we are flying
With a Thud of the plane to the earth
Many jockeys have flown to the valley
And a number have never return” 

Can’t stop the music!

Legenda: O mapa da batalha de Jarama é tirado de A Guerra Civil de Espanha de Hugh Thomas

1 comentário:

" R y k @ r d o " disse...

Por vezes visitarmos o Baú até que nem é mau. " Limpam-se " as ideias e recordam-se músicas antigas de um valor extraordinário

Existe quem só goste de músicas atuais. Existe também, felizmente, quem goste de recordar a boa música que se fez antigamente.

Muito bom recordar... porque recordar é viver

Cumprimentos