É sabido que
isto de contar histórias da Folk Music é como as cerejas e que, atrás de uma,
outras nos vêm de imediato à memória.
Este é mais
um exemplo do “Folk process” de que vos falei anteriormente, isto é, da
capacidade das canções sobreviverem à erosão dos tempos, mediante novas letras
adaptadas a novas realidades. Mas, como exemplo, era descabido no texto
anterior, e por isso decidi dedicar-lhe um texto autónomo.
“Red River
Valley” é uma das canções tradicionais americanas de que mais gosto.
Tal como
tantas outras, a sua origem é difícil de estabelecer e a sua autoria impossível
de atribuir. Parece ter nascido no Canadá na segunda metade do Séc. XIX e daí
partido para os Estados Unidos, onde se tornaria uma das “cowboy songs”
mais conhecidas.
A sua
primeira gravação de sucesso data de 1927 e deve-se a Riley Pucket, embora com
uma letra substancialmente diferente daquela que acabaria por ficar para a
posteridade e cujo refrão quase toda a gente conhece:
“From this
valley they say you are going
We will
miss your bright eyes and sweet smile
For they
say you are taking the sunshine
That has
brightened our pathway a while
Come and
sit by my side if you love me
Do not
hasten to bit me adieu
But
remember the Red River valley
And the
cowboy that has loved you so true”
É uma canção
nostálgica de despedida. De um Amor, de uma Vida, de um Amigo, de um pedacinho de Felicidade que um dia
tivemos e se nos escapou por entre os dedos, sem que soubéssemos muito bem
porquê...
Nas “Vinhas
da Ira”, do velho Ford, Tom Joad/Henry Fonda canta-a à sua mãe enquanto dança
com ela e o rosto da pobre senhora transfigura-se de imediato, como se a música
fosse, por si só, um mau presságio daquilo que se iria seguir.
Leonard Cohen
gostava muito de “Red River Valley” e cantou-a muitas vezes ao
vivo.
No
documentário “Songs From the Life of L.C.”, ele é acompanhado pela equipa de filmagens de
regresso à Ilha de Hydra, onde havia sido feliz com Marianne Ihlen. Vemo-lo a
subir as estreitas ruelas do povoado, entrar na pequena casa caiada a
branco, dirigir-se àquele quartinho que está na contracapa de “Songs From a
Room”, abrir a gaveta da mesma cómoda e lá encontrar uma velha
harmónica. Leva-a aos lábios e o que toca ele…? “Red River Valley”, como
quem diz, mais uma vez, “so long Marianne”…
São inúmeras
as gravações conhecidas de “Red River Valley”, do classissismo de Joe
Stafford ao “kitsch” de Slim Whitman, passando pela versão mais sóbria de Ed
McCurdy, que alguns de vós se recordarão ser a música com que, habitualmente,
encerrava as hostilidades nas noites de jantar em minha casa, seguidas de
serão musical.
Mas falar-vos
de “Red River Valley” foi uma mera introdução para o que se vai
seguir…
A batalha de
Jarama, que teve lugar às portas de Madrid entre 6 e 27 de Fevereiro de 1937,
foi uma das mais sangrentas de toda a Guerra Civil Espanhola. Entre mortos e
feridos, Nacionalistas e Republicanos sofreram um número muito significativo de
baixas numa carnificina em que, no final, nenhuma das partes logrou obter
qualquer vantagem sobre a outra.
Do lado dos
Republicanos estavam as Brigadas Internacionais constituídas por, entre
outros, voluntários americanos (a célebre Abraham Lincoln Brigade),
ingleses, irlandeses e soviéticos.
Todos
sofreram fortes baixas, mas o batalhão americano ficou reduzido a um terço dos
cerca de 500 homens iniciais, pelo que esta batalha teve um enorme impacto na
América, sobretudo nos meios anti-fascistas afetos ao Partido Comunista, de
onde provinham uma boa parte desses voluntários de guerra.
Mas,
curiosamente, não foi um americano, mas sim um inglês de nome Alex McDade que
pegou na música de “Red River Valley” e lhe fez uma nova letra alusiva à
batalha de Jarama, a que chamou “Jarama Valley”, que rapidamente se popularizou
entre os soldados Republicanos.
McDade foi
ferido em Jarama e acabaria por morrer noutra batalha, alguns meses depois, sem
ter podido assistir à evolução que a letra da sua canção iria sofrer.
Após o final
da Guerra, em muitos países fora de Espanha, grupos de antigos combatentes
continuaram a encontrar-se com regularidade para homenagear os desaparecidos em
combate, relembrar as histórias da guerra e cantar as suas canções, e à medida que o faziam a letra ia mudando, de país para país.
Em 1944 o
grande Moses Ash, pai da Editora Folkways, resolveu juntar um grupo de músicos
à volta de Pete Seeger e gravar aquilo a que chamou “Songs of the Lincoln Brigade”
(estão, integralmente, numa das coletâneas que vos mostro).
“Jarama
Valley” faz parte desse conjunto de canções e nessa primeira vez que foi
gravada nos Estados Unidos, foi-o com a seguinte letra:
“There’s a
valley in Spain called Jarama
It’a a
place that we all know so well
It was
there that we gave of our manhood
Where so
many of our brave comrades fel
We are
proud of the Lincoln Battalion
And the
fight for Madrid that they made
There we
fought like the sons of the people
As part of
the Fifteenth Brigade
Now we’re
far from that valley of sorrow
But it’s
memory we never will Forget
So before
we conclude this reunion
Let us
stand to our glorious dead”
Mas nos
Estados Unidos a coisa ainda não iria ficar por aqui…
Woody
Guthrie, o mais radical dos radicais e o homem que fez inscrever na sua
guitarra a frase “This Machine Kills Fascists”, escreveu uma nova
versão, na qual os fascistas já não eram apenas os de Espanha…:
“There’s a
valley in Spain called Jarama
It’s a
place that we all know so well
It was
there that we fought against the fascists
We saw a
peacefull valley turn to hell
From that
valley they say we are going
But don’t
hasten to bit us adieu
Even though
we lost the battle of Jarama
We’ll set
this valley free before we’re through
We were men
of the Lincoln Battalion
We’re proud
of the fight that we made
We know
that you people of the valley
Will
remember our Lincoln Brigade
From this
valley they say we are going
…………………………………………………………..
You will
never find peace with these fascists
You will
never find friends such as we
So remenber
that valley of Jarama
And the
people that’ll set this valley free
From this
valley they say we are going
……………………………………………………………
All this
world is like this valley of Jarama
So green
and so bright and so fair
No fascists
can dwell in our valley
Nor breathe
in our new freedom’s air
(Que belas
intenções, Querido Woody…! Mas haverias de regressar a esta Terra para veres
como isto está…)
Em 2003 a Appleseed
Recordings editou uma nova colectânea de “Songs of the Spanish Civil
War” (segunda coletânea que vos mostro) em que “Jarama Valley” é
cantada por Arlo, filho de Woody, sob uma interessante narração de Pete
Seeger. A letra é uma mistura das duas que atrás referi, com a
curiosidade de Arlo ter cortado da canção do pai todas as referências a
“fascistas”, o que deve ter levado o velho Woody a dar duas voltas no
túmulo…!
Os anos foram
passando e durante a Guerra do Vietname, onde também existia um “Red River”,
surgiu, num batalhão da Força Aérea Americana, uma nova versão de “Red River
Valley” adaptada a esses tempos, com a seguinte letra (existe um pequeno
filme no Youtube onde se pode ouvir a música, mas desconheço a existência de qualquer
gravação):
“Come and
sit by my side at the briefing
We will sit
there and tickle the beads
Then we’ll
head for the Red River Valley
And today
I’ll be flying teak lead
To the
valley he said we are flying
With a Thud
of the plane to the earth
Many
jockeys have flown to the valley
And a
number have never return”
Can’t stop
the music!
Legenda: O mapa da batalha de Jarama é tirado de A Guerra Civil de Espanha de Hugh Thomas
Legenda: O mapa da batalha de Jarama é tirado de A Guerra Civil de Espanha de Hugh Thomas
1 comentário:
Por vezes visitarmos o Baú até que nem é mau. " Limpam-se " as ideias e recordam-se músicas antigas de um valor extraordinário
Existe quem só goste de músicas atuais. Existe também, felizmente, quem goste de recordar a boa música que se fez antigamente.
Muito bom recordar... porque recordar é viver
Cumprimentos
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