Na
autoestrada 40 a caminho de Nashville, onde nos esperava um concerto do Gordon
Lightfoot no Ryman, fiz um pequeno desvio para Knoxville, como tinha previsto.
Quando
cheguei ao centro da cidade estava aflito para ir à casa de banho e meti o
carro no primeiro parque de estacionamento que encontrei. Era uma espécie
de Posto Turístico que servia, também, de Receção para visita à casa de um
importante general lá da terra que havia participado na Guerra da Secessão.
Entrei
por ali adentro a correr em direção ao wc e à saída fui falar com o empregado
que se encontrava ao balcão. Por sorte era o dia de encerramento da casa do
general e safei-me comprando dois ou três postais.
Porque
tinha de alimentar a conversa, perguntei-lhe o que já muito bem sabia,
isto é, se aquele grande edifício que ficava ali atrás, “Andrew Jackson
Building”, era o antigo “Andrew Jackson Hotel” onde Hank Williams tinha passado
a sua última noite antes de morrer.
A sua resposta foi: “That depends on the story you believe in... “
Sorri-lhe
e percebi que, como era natural, ele sabia do que estava a falar…. É que há
várias versões acerca da morte de Hank Williams.
Mas
façamos um “flashback” e
contemos a história do princípio.
Já
tínhamos visto que naquele malvado ano de 1952, Hank Williams estava de rastos.
Tinha-se
divorciado e casado quase logo de seguida com outra mulher, por pura vingança,
decerto…
Andava
ou tinha andado envolvido com uma outra mulher, de quem esperava um filho.
Tinha
sido expulso do “Grand Ole Opry”
e das outras principais estações de rádio em que participava, e tinha
também visto ser cancelada a sua ligação a um produtor tão influente como já
era, na altura, Fred Rose.
A
sua saúde ia de mal a pior, já que uma grande queda dada no ano anterior,
quando caçava na companhia de um amigo, lhe tinha agravado o seu problema
das costas e só a dose conjunta de medicamentos e álcool lhe atenuava as dores.
Envolveu-se, na altura, com um charlatão que se dizia médico altamente
graduado, o qual lhe prometeu milagres na cura da sua doença, mas à custa
de morfina e outras drogas afins.
Embora
Hank Williams não ligasse patavina ao dinheiro, de finanças também não deveria
andar muito bem porque o divórcio saíra-lhe caro: a mulher ficara com a
custódia do filho, com a casa e com metade dos seus futuros “royalties”, enquanto não se voltasse
a casar.
Também
devido a isso, tinha recomeçado a atuar nos “honky-tonks” à volta de Montgomery, atuações essas que não raro
acabavam em cenas de pancadaria quando alguém lhe mandava uma “boca” mais
inconveniente.
Mas
Hank não se deixava abater e tinha, para já, conseguido dois novos espetáculos
para fim do ano, um em Charleston, a 31 de Dezembro, e outro em Canton, no
Ohio, a 1 de Janeiro.
Por
essa altura do ano o tempo estava péssimo no Sul dos Estados Unidos, e
gorara-se a possibilidade de fazer as viagens de avião.
Hank
lembrou-se, então, do filho de um conhecido seu que tinha uma empresa de Taxis,
que por vezes encontrava a fazer biscates numa bomba de gasolina, onde nunca
deixava de elogiar o seu vistoso Cadillac azul claro. Perguntou ao rapaz se
estava preparado para ser seu motorista numa viagem de ida e volta ao Ohio, o
rapaz respondeu-lhe que era um verdadeiro às do volante e foi contratado na
hora. Tinha 17 anos de idade...
O
rapaz chamava-se Charlie Carr e a partir daqui o que vos conto foi o que o
próprio Carr contou, muitos anos depois...
Hank
e Carr meteram-se à estrada em Montgomery às 13h00 do dia 30 de Dezembro de
1952, com a certeza de irem encontrar, para além da chuva, muito gelo e até
neve pelo caminho. Para o aquecer na viagem Hank ia preparado com seis “packs”
de cerveja Falstaff…
Hank
ia animado no início da viagem, cantando e contando anedotas e metendo-se com o
miúdo por este não saber quem cantava, na rádio, “Jambalaya”…
A
primeira parte da viagem não foi muito comprida, porque dormiram em Birmingham,
a menos de 200 km de distância. Mas sairiam de madrugada no dia seguinte.
Em
Chattanooga, no Tenessee, já nevava e Hank percebeu que a única alternativa que
lhe restava para poder chegar a horas a Charleston era ir a Knoxville apanhar
um avião, o que conseguiu fazer.
O
avião levantou voo às 15h00 do dia 31, mas o tempo estava de tal maneira mau
que teve de fazer meia volta e regressar à base. De novo em Knoxville
dirigiram-se ao hotel “Andrew Jackson”, onde se instalaram no quarto nº 17.
Entretanto,
o estado de saúde de Hank Williams piorara pelos motivos do costume: álcool
misturado com drogas, já que Hank despachara rapidamente as cervejas que levara
e já tinha comprado uma garrafa de bourbon no caminho. Não parava de
tossir...
Na
sua inexperiência, o jovem Carr começava a ficar assustado. Falou com o
representante de Williams, o qual lhe deu instruções para chamar de imediato um
médico, mas que, custasse o que custasse, levasse Hank até Clanton para o
espetáculo do dia seguinte, sob pena de ter de pagar uma pesada indemnização ao
promotor do concerto e pôr em risco a possibilidade de futuros contratos. Mas,
para o conseguirem, teriam de sair de imediato e fazer a viagem de noite
Hank
pouco comeu. Soluçava muito e tinha dificuldade em engolir.
O
médico deu-lhe uma injeção de vitamina B12 com morfina, e Hank dormiu vestido
em cima da cama até às 22h00.
Pelas
22h45 abandonaram o hotel e Hank teve de sair de cadeira de rodas, ajudado
pelos porteiros do hotel, mas entrou no carro pelo seu próprio pé, garante
Carr. Taparam-no com uma manta, para o proteger do frio.
Mas
o tempo piorara e não se podia andar depressa. Carr fazia o que podia
numa estrada coberta de gelo e, após uma ultrapassagem, quase foi acabar em
cima de um carro-patrulha que estava à beira da estrada. Uma ida à
esquadra, uma multa, perda de tempo, maior nervosismo…
Numa
bomba de gasolina perto de Bristol, Carr parou para comer uma bucha e
perguntou a Hank se queria comer alguma coisa. Este saiu para desentorpecer as
pernas e disse que não queria nada, a não ser dormir… Terão sido as suas
últimas palavras.
Umas
horas depois Carr começou a achar estranho a ausência de ruído no banco
traseiro. Parou para ver… Hank estava dobrado sobre o banco da frente, de mão
no peito… O seu corpo já estava hirto.
Na
primeira bomba de gasolina que encontrou perguntou por um hospital. Uma
tabuleta, nas proximidades, indicava Oak Hill, West Virginia...
O
diagnóstico médico foi paragem do coração por enfarte. Parece que a hora não
foi rigorosamente determinada, mas raiava a manhã do dia 1 de Janeiro de
1953.
No
banco traseiro do carro foram encontradas garrafas, embalagens de medicamentos
e vários papeis soltos com letras de canções, algumas delas inacabadas.
Hank
Williams, o cantor do sofrimento, da tristeza e da solidão, morria
sozinho no banco traseiro de um automóvel, de cabeça encostada à janela, tendo
como única companhia uma garrafa e um frasco de comprimidos...
Imagino-o
nos seus últimos momentos a ver a neve cair sobre os ramos das árvores, os
reflexos dos faróis na estrada molhada… E aposto que, dentro de si, ainda
terá escrito uma nova e última canção…
Naqueles
tempos a informação não corria com a rapidez de hoje, e a sala do “Canton Memorial Auditorium” estava apinhada de gente
ansiando pelo início do espetáculo, sem sequer sonhar com o que se passava...
Tim
Hardin contou-o à sua maneira:
“The chauffeur steered the
car that night
To the town next in line to
the show
With his name and date in
lights
And the people with tickets
to go
Hardly nobody knew that
night how soon they’d be crying
Hardly nobody knew that
night Hank williams was dying”
Quando
um elemento da Organização subiu ao palco para informar o que se passava,
as pessoas na assistência começaram por se rir, pensando que se tratava de uma
brincadeira para justificar mais uma das habituais faltas de comparência de
Hank…
Mas
a banda de apoio e todos os que se encontravam no palco deram os braços e
começaram a cantar em coro “I Saw the
Light”, uma “gospel song”
que parece ser de tempos longínquos, mas que Hank Williams” escrevera em
1946... A assistência compreendeu então a triste notícia, ergueu-se das suas
cadeiras e todos cantaram em coro:
“I saw the light, I saw the
light
No more dakness, no more
night
Now I’m só happy, no sorrow
in sight
Praise the Lord, I saw the
light!”
Desejo
sinceramente que, algures a meio do caminho, a tenha mesmo visto...
PS:
A
história de Carr é considerada a mais credível, mas existem, pelo menos, mais
duas versões.
Uma,
em que muito boa gente acredita, é que terá morrido no quarto do hotel, na
sequência do violento “shot” de
morfina que o médico lhe deu. Nem o médico nem a Gerência do hotel se queriam
ver envolvidos nessa embrulhada, e Carr terá recebido bom dinheiro para se
calar… De facto, para além das declarações que teve de prestar à Polícia no
momento, Carr nunca abordou publicamente o assunto durante décadas, apenas o
tendo feito já nos seus últimos anos de vida, sem alterar uma vírgula à sua
versão inicial.
Uma
terceira versão, mais fantasiosa e muito pouco credível, é que Hank terá sido
alvo de um ajuste de contas devido a esquemas obscuros de tráfego de drogas em
que estaria envolvido, não para negociar, mas para assegurar o seu stock . Poucos dias antes da viagem,
Hank envolvera-se em mais uma cena de pancadaria num bar de Montgomery. O seu
corpo ainda tinha escoriações dessa rija, o que levantou suspeitas e alimentou
especulações. Carr não se teria apercebido de nada ou, então, teria sido
seriamente ameaçado de morte se contasse alguma coisa...
PS
2:
A
minha memória está uma desgraça...
Ia
jurar que tinha comprado, no Museu Hank Williams de Montgomery (de onde provêm
as fotografias do Cadillac azul que vos mostro, emprestado ao museu pelo filho
de Hank) um suplemento de um jornal da terra onde Carr, já velhote,
contava com muito detalhe a sua história. Não o encontrei…
Em
contrapartida, disse-vos que não tinha nenhum livro acerca de Hank Williams, e
menti… Ainda no museu comprei este opúsculo de 40 páginas que agora me
lembro de ter lido no voo de regresso. Arrumei-o e nunca mais de lembrei
dele.
Mas
a história de Charlie Carr encontra-se facilmente na Net.
PS
3:
Sam
Shepard, num dos seus livros de crónicas de viagens, tem um curioso texto
acerca da morte de Hank Williams. Para não vos sobrecarregar, deixarei isso
para depois...
Texto
de Luís Miguel Mira
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