domingo, 29 de março de 2020

ANDREW JACKSON HOTEL, KNOXVILLE


Na autoestrada 40 a caminho de Nashville, onde nos esperava um concerto do Gordon Lightfoot no Ryman, fiz um pequeno desvio para Knoxville, como tinha previsto.

Quando cheguei ao centro da cidade estava aflito para ir à casa de banho e meti o carro no primeiro parque de estacionamento que encontrei.  Era uma espécie de Posto Turístico que servia, também, de Receção para visita à casa de um importante general lá da terra que havia participado na Guerra da Secessão.

Entrei por ali adentro a correr em direção ao wc e à saída fui falar com o empregado que se encontrava ao balcão. Por sorte era o dia de encerramento da casa do general e safei-me comprando dois ou três postais.

Porque tinha de alimentar a  conversa, perguntei-lhe o que já muito bem sabia, isto é, se aquele grande edifício que ficava  ali atrás, “Andrew Jackson Building”, era o antigo “Andrew Jackson Hotel” onde Hank Williams tinha passado a sua última noite antes de morrer.  

A sua resposta foi:  “That depends on the story you believe in...

Sorri-lhe e percebi que, como era natural, ele sabia do que estava a falar…. É que há várias versões acerca da morte de Hank Williams.

Mas façamos um “flashback” e contemos a história do princípio.

Já tínhamos visto que naquele malvado ano de 1952, Hank Williams estava de rastos.

Tinha-se divorciado e casado quase logo de seguida com outra mulher, por pura vingança, decerto…

Andava ou tinha andado envolvido com uma outra mulher, de quem esperava um filho.

Tinha sido expulso do “Grand Ole Opry” e das outras principais estações de rádio  em que participava, e tinha também visto ser cancelada a sua ligação a um produtor tão influente como já era, na altura, Fred Rose.


A sua saúde ia de mal a pior, já que uma grande queda dada no ano anterior, quando caçava na companhia de um amigo,  lhe tinha agravado o seu problema das costas e só a dose conjunta de medicamentos e álcool lhe atenuava as dores. Envolveu-se, na altura, com um charlatão que se dizia médico altamente graduado,  o qual lhe prometeu milagres na cura da sua doença, mas à custa de morfina e outras drogas afins.


Embora Hank Williams não ligasse patavina ao dinheiro, de finanças também não deveria andar  muito bem porque o divórcio saíra-lhe caro: a mulher ficara com a custódia do filho,  com a  casa e com metade dos seus futuros “royalties”, enquanto não se voltasse a casar.

Também devido a isso, tinha recomeçado a atuar nos “honky-tonks” à volta de Montgomery, atuações essas que não raro acabavam em cenas de pancadaria quando alguém lhe mandava uma “boca” mais inconveniente.  

Mas Hank não se deixava abater e tinha, para já, conseguido dois novos espetáculos para fim do ano, um em Charleston, a 31 de Dezembro, e outro em Canton, no Ohio, a 1 de Janeiro.

Por essa altura do ano o tempo estava péssimo no Sul dos Estados Unidos, e gorara-se a possibilidade de fazer as viagens de avião.

Hank lembrou-se, então, do filho de um conhecido seu que tinha uma empresa de Taxis, que por vezes encontrava a fazer biscates numa bomba de gasolina, onde nunca deixava de elogiar o seu vistoso Cadillac azul claro. Perguntou ao rapaz se estava preparado para ser seu motorista numa viagem de ida e volta ao Ohio, o rapaz respondeu-lhe que era um verdadeiro às do volante e foi contratado na hora. Tinha 17 anos de idade...

 O rapaz chamava-se Charlie Carr e a partir daqui o que vos conto foi o que o próprio Carr contou, muitos anos depois...



Hank e Carr meteram-se à estrada em Montgomery às 13h00 do dia 30 de Dezembro de 1952, com a certeza de irem encontrar, para além da chuva, muito gelo e até neve pelo caminho. Para o aquecer na viagem Hank ia preparado com seis “packs” de cerveja Falstaff…

Hank ia animado no início da viagem, cantando e contando anedotas e metendo-se com o miúdo por este não saber quem cantava, na rádio, “Jambalaya”…

A primeira parte da viagem não foi muito comprida, porque dormiram em Birmingham, a menos de 200 km de distância. Mas sairiam de madrugada no dia seguinte.

Em Chattanooga, no Tenessee, já nevava e Hank percebeu que a única alternativa que lhe restava para poder chegar a horas a Charleston era ir a Knoxville apanhar um avião, o que conseguiu fazer.

O avião levantou voo às 15h00 do dia 31, mas o tempo estava de tal maneira mau que teve de fazer meia volta e regressar à base.  De novo em Knoxville dirigiram-se ao hotel “Andrew Jackson”, onde se instalaram no quarto nº 17.




Entretanto, o estado de saúde de Hank Williams piorara pelos motivos do costume: álcool misturado com drogas, já que Hank despachara rapidamente as cervejas que levara e já tinha comprado uma garrafa de bourbon no caminho.  Não parava de tossir...

Na sua inexperiência, o jovem Carr começava a ficar assustado. Falou com o representante de Williams, o qual lhe deu instruções para chamar de imediato um médico, mas que, custasse o que custasse, levasse Hank até Clanton para o espetáculo do dia seguinte, sob pena de ter de pagar uma pesada indemnização ao promotor do concerto e pôr em risco a possibilidade de futuros contratos. Mas, para o conseguirem, teriam de sair de imediato e fazer a viagem de noite 

Hank pouco comeu. Soluçava muito e tinha dificuldade em engolir.

O médico deu-lhe uma injeção de vitamina B12 com morfina, e Hank dormiu vestido em cima da cama até às 22h00. 

Pelas 22h45 abandonaram o hotel e Hank teve de sair de cadeira de rodas, ajudado pelos porteiros do hotel, mas entrou no carro pelo seu próprio pé, garante Carr. Taparam-no com uma manta, para o proteger do frio.

Mas o tempo piorara e não se podia andar depressa.  Carr fazia o que podia numa estrada coberta de gelo e, após uma ultrapassagem, quase foi acabar em cima de um carro-patrulha que estava à beira da estrada.  Uma ida à esquadra, uma multa, perda de tempo, maior nervosismo…

Numa bomba de gasolina perto de  Bristol, Carr parou para comer uma bucha e perguntou a Hank se queria comer alguma coisa. Este saiu para desentorpecer as pernas e disse que não queria nada, a não ser dormir… Terão sido as suas últimas palavras.

Umas horas depois Carr começou a achar estranho a ausência de ruído no banco traseiro. Parou para ver… Hank estava dobrado sobre o banco da frente, de mão no peito… O seu corpo já estava hirto.

Na primeira bomba de gasolina que encontrou perguntou por um hospital. Uma tabuleta, nas proximidades, indicava Oak Hill, West Virginia...

O diagnóstico médico foi paragem do coração por enfarte. Parece que a hora não foi rigorosamente determinada, mas raiava a manhã do dia 1 de Janeiro de 1953.  




No banco traseiro do carro foram encontradas garrafas, embalagens de medicamentos e vários papeis soltos com letras de canções, algumas delas inacabadas.

 Hank Williams, o cantor do sofrimento, da tristeza e da solidão,  morria sozinho no banco traseiro de um automóvel, de cabeça encostada à janela, tendo como única companhia uma garrafa e um frasco de comprimidos...

Imagino-o nos seus últimos momentos a ver a neve cair sobre os ramos das árvores, os reflexos dos faróis na estrada molhada…  E aposto que, dentro de si, ainda terá escrito uma nova e última canção… 

Naqueles tempos a informação não corria com a rapidez de hoje, e a sala do “Canton Memorial Auditorium” estava apinhada de gente ansiando pelo início do espetáculo, sem sequer sonhar com o que se passava...

Tim Hardin contou-o à sua maneira:

“The chauffeur steered the car that night
To the town next in line to the show
With his name and date in lights
And the people with tickets to go

Hardly nobody knew that night how soon they’d be crying
Hardly nobody knew that night Hank williams was dying”

Quando um elemento da Organização subiu ao palco para  informar o que se passava, as pessoas na assistência começaram por se rir, pensando que se tratava de uma brincadeira para justificar mais uma das habituais faltas de comparência de Hank…

Mas a banda de apoio e todos os que se encontravam no palco deram os braços e começaram a cantar em coro “I Saw the Light”, uma “gospel song” que parece ser de tempos longínquos, mas que Hank Williams” escrevera em 1946... A assistência compreendeu então a triste notícia, ergueu-se das suas cadeiras e todos cantaram em coro:

“I saw the light, I saw the light
No more dakness, no more night
Now I’m só happy, no sorrow in sight
Praise the Lord, I saw the light!”

Desejo sinceramente que, algures a meio do caminho, a tenha mesmo visto...

PS:

A história de Carr é considerada a mais credível, mas existem, pelo menos, mais duas versões.

Uma, em que muito boa gente acredita, é que terá morrido no quarto do hotel, na sequência do violento “shot” de morfina que o médico lhe deu. Nem o médico nem a Gerência do hotel se queriam ver envolvidos nessa embrulhada, e Carr terá recebido bom dinheiro para se calar… De facto, para além das declarações que teve de prestar à Polícia no momento, Carr nunca abordou publicamente o assunto durante décadas, apenas o tendo feito já nos seus últimos anos de vida, sem alterar uma vírgula à sua versão inicial.

Uma terceira versão, mais fantasiosa e muito pouco credível, é que Hank terá sido alvo de um ajuste de contas devido a esquemas obscuros de tráfego de drogas em que estaria envolvido, não para negociar, mas para assegurar o seu stock . Poucos dias antes da viagem, Hank envolvera-se em mais uma cena de pancadaria num bar de Montgomery. O seu corpo ainda tinha escoriações dessa rija, o que levantou suspeitas e alimentou especulações.  Carr não se teria apercebido de nada ou, então, teria sido seriamente ameaçado de morte se contasse alguma coisa...  

PS 2:

A minha memória está uma desgraça...  

Ia jurar que tinha comprado, no Museu Hank Williams de Montgomery (de onde provêm as fotografias do Cadillac azul que vos mostro, emprestado ao museu pelo filho de Hank) um suplemento de um jornal da terra onde Carr, já velhote,  contava com muito detalhe a sua história. Não o encontrei…

Em contrapartida, disse-vos que não tinha nenhum livro acerca de Hank Williams, e menti… Ainda no museu comprei este  opúsculo de 40 páginas que agora me lembro de ter lido no voo de regresso. Arrumei-o e nunca mais de lembrei dele. 

Mas a história de Charlie Carr encontra-se facilmente na Net. 

PS 3:

Sam Shepard,  num dos seus livros de crónicas de viagens, tem um curioso texto acerca da morte de Hank Williams. Para não vos sobrecarregar, deixarei isso para depois...

Texto de Luís Miguel Mira

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