quinta-feira, 27 de maio de 2021

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Sou um velho apreciador de antologias.

Chegou-me às mãos uma revista de ensaios criativos e pessoais, inquietações na primeira pessoa, que dá pelo nome de Mamute, e o volume de que vos falo é o nº 2 referente a esta Primavera.

No editorial, Gonçalo Mira, escreve, entusiasmado, que o nº 1 da Mamute, encontra-se esgotado e isso deixou-o surpreendido.

Não dei pela revista, também terei que dizer que não tenho ido a livrarias, estupidamente o governo, por causa da pandemia, determinou que encerrassem e, como as livrarias independentes de que gostava, fecharam, para sempre portas, não tenho paciência para ir, motivos diversos e muito meus, às que me estão ao pé, como a Leya e a Bertrand na Avenida de Roma.

Devo, a estas antologias de textos, de poesias, muito, mas mesmo muito, do gosto pela leitura. Na biblioteca do meu pai havia uma série de antologias publicados pela Portugália Editora que serviram de trampolim para outros voos: Líricas Portuguesas, organizadas pelo Jorge de Sena, Antologia de Mestres do Conto Policial, Antologia de Obras de António Sérgio, Os Melhores Contos Portugueses, As Melhores Histórias Fantásticas, por aí fora.

Mais tarde comprei as antologias que iam sendo editadas: as da Inova, poesias publicadas nos anos 70 e 71 com direcção do poeta Egito Gonçalves, os textos da Grifo, editados pelo Vitor Silva Marques, As Escadas Não Têm Degraus da Cotovia, mais recentemente, os resumos de poesia publicados pela Assírio & Alvim, começados com a poesia publicada em 2009 e findos com a poesia publicada em 2013.

São cinco os textos deste número da Mamute.

Chamou-me logo a atenção o texto de Margarida Ferra, não só pela referência que tinha da autora como pelo título: Janela de Sacada.

Gosto do nome que logo me remeteu para os meus tempos de infância, passados numas águas-furtadas na Rua da Senhora do Monte, à Graça, uma vista esplendorosa para o Tejo, cheio de fragatas, de navios a descarregarem cereais a granel, a outra margem com as altas chaminés do Barreiro, desprendendo fumos.

A minha avó, nos dias de sol, punha um pano branco para fazer sombra, uma mesinha na pequena varanda daquela águas-furtadas, frente a um rio que é um mar, eu almoçava um bife, batatas fritas às rodelas, um ovo, manjar raríssimo lá pela casa dos meus pais, tempos muito difíceis…

Ficava ali horas.

Sentia que o mundo era maravilhoso e assim seria para todo o sempre.

Ali, era o meu lugar de eleição, uma magia única, um paraíso que não mais voltei a encontrar, qualquer coisa que toca, enfeitiça e que deixou marcante rasto.

Algures, Walter Benjamim diz que para conhecer toda a melancolia de uma cidade, é preciso ter sido lá criança.

 Como António Gedeão, sempre quis voltar a subir aquelas escadas, bater à porta, dizer a quem a abrisse, que um miúdo de 8 anos, em tempos distantes, olhava o Tejo daquela varanda e se poderia rever essa sensação.

Quando subo aquela rua, olho o marco do correio que ainda se encontra junto à porta e, ao contrário de Gedeão, nem as escadas subo.

Dado os tempos de insegurança que se vivem, talvez a ideia não fosse assim tão fácil de concretizar.

Quanto ao nome de Margarida Ferra, com o livro Curso Intensivo de Jardinagem, ainda está numa longa lista de livros a comprar. O livro foi editado, em 2010, pela & etc e nunca o encontrei nas livrarias, porque são livros que raramente descem aos escaparates, ninguém os compra, dão pouco lucro, ao contrário do lixo «escrito» por «pivots» e outros personagens de televisão ou do futebol.

Por uma manhã de Abril de 2014, quando finalmente concretizei uma visita ao subterrâneo do Vitor Silva Tavares, na Rua da Horta Seca, tantas e tantas vezes prometida aquando de nossas conversas em todas as Feira do Livro, até ele sair pela esquerda alta não sei para onde, («olhe que a acampainha, por vezes, não toca…») levava uma lista de alguns livros editados pela & etc., tenho o nº 1 da Colecção, todos os do Eduardo Guerra Carneiro, do João César Monteiro,  mas faltam-me alguns do Jorge Fallorca, a Carta ao Pai do Kafka  e o da margarida Ferra. O Vitor ainda se levantou da secretária, percorreu as estantes, não tinha nenhum dos livros que eu queria, desolado disse-me que iria falar com o Paulo da Costa Domingos e se tivesse alguma sorte me comunicaria.


O texto da Margarida Ferra, publicado neste volume da Mamute, espraia-se pela dificílima experiência que a autora enfrentou, um mês em casa com Covid, numa narrativa comovente e, num ápice, o leitor fica enredado naquela intensa comoção: janelas quase sempre abertas, um companheiro em tratamentos oncológicos, «cresce muito, o medo, quando tememos pelos que amamos», três filhos (15, 13, 2 anos), um gato, o frigorífico que se supõe avariado, a televisão que se recusa a fornecer imagens, a solidariedade dos amigos, dos familiares, dos vizinhos, as mensagens que a educadora do filho mais novo lhe manda, um postal da Hélia, as flores da Ana entregues por uma rapariga sorridente de bicicleta, a rua que a janela de sacada empresta, rua onde um inimigo sem rosto, implacável nos cerca, ameaça e humilha, mas tudo tão difícil por aqueles dias… tudo… a comida que tem de ser feita, um esparguete com ameijoas, o lamento por ter saído demasiado cosido quando lhe pareceu que a textura se afigurava «al dente», ah! e onde o sabor dos coentros?... também os testes do olfacto, cheirar mil vezes o café, cada vez mais longínquo... uma frase sentida : «nessa noite, jantei sem fome…», também a preocupação com os estudos dos miúdos «terei sempre dificuldade em perceber a carga de trabalhos que o ensino à distância trouxe a estes alunos.»

Se cada um fizesse o registo dos confinamentos que nos invadiram o quotidiano, ficariam as imagens escritas de que há sempre uns piores que outros, que há sempre histórias, experiências tristes, deslumbrantes, o ficarmos a saber que é possível, sempre, enfrentar os perigos, as dificuldades, somos por ventura melhores do que aquilo que pensamos saber.

Cá por casa também estivemos perfilados de medo, como na canção do Zé Mário Branco, confinados,  mas nunca doentes.

Saíamos pouco de casa, os filhos traziam o que era necessário, ocorreu-me, então, escrever sobre o desfiar daqueles dias, comecei a 18 de Março, não fui além de 3 de Maio, estão por aí com a etiqueta Diário dos Dias Difíceis.

Não que entendesse que os dias não iriam a continuar a serem difíceis, mas perdi-me, nada era como inicialmente previra fazer, acabei por cair em extremismos opinativos, em lamechices parvas, as palavras nunca saíam como queria que saíssem, e não vislumbrava ponta alguma daquele novelo…

Pus as culpas na historieta que os dias do vírus me perturbavam.

Balelas.

Senti que para continuar a viver os dias de pesadelo, teria que viver de forma mais inteligente, mas os tempos eram medíocres, repletos de chicos-espertos-opinativos, repletos de aldrabões e oportunistas, um oceano de palradores televisivos: use máscara, não use máscara, as melhores são aquelas que…

Tinha saudades da vida, mesmo sabendo que essa vida não tinha excepcionalidades por aí além, mas era a minha vida, a possível.

Sobravam-me, sobrarão para sempre, muitas dúvidas que essa tal vida nos volte a acontecer.

Quando os gestos diários estão sujeitos a estados de emergência ou de calamidade, sabia que nada disso provoca serenidade, tentava o meu melhor esforço para irradiar um ligeiro optimismo, mas…

Um dia, numas imagens que as televisões deram do encontro que a CGTP realizou no 1º de Maio, ficou-me uma: um homem já de meia-idade, máscara no rosto, bandeira vermelha na mão, tem um minuto em que baixa a máscara, põe a bandeira vermelha debaixo do braço, e mete um cigarro à boca. O repórter demora um pouco a imagem, mas segue para outros personagens, e eu sorri largo, fiquei a pensar no prazer do fumar que aquele homem de meia-idade conquistou naquele manso cair da tarde.

Fumar mata!

E daí?

Morre-se de tanta coisa.

Até de amor, como o King Kong, seguindo os passos de um texto-poema do Eduardo Guerra Carneiro.

Daqueles dias cruéis, de gratificante ficou pela casa o cheiro do bolo de laranja/limão que eu e a Aida, comíamos acompanhado com tisanas, perto das 2/3 horas da madrugada, quando terminávamos, mantas nos joelhos, o visionamento de velhos filmes em DVD e sempre a enorme frustracção de não podermos olhar, por avaria técnica, as tais 650 (180 minutos cada) cassettes VHS, com outros velhos filmes, documentários, concertos.

Tempo de deixar esta janela de sacada:

«A janela chega até ao chão. E tem uma porta como se levasse a uma varanda, protegida por uma grade de ferro trabalhado, sem lugar para pôr os pés. Sem espaço para avançar. Um rectângulo alto, uma falsa promessa de um piso diferente.»

Mas ainda o tempo para reencontrar, algures no texto, uma frase:

«O mais difícil está sempre para vir.»

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