Deus Lhe Pague…
Joracy Camargo
Prefácio de Procópio
Ferreira
Edição do Autor, Maio de 1935
MENDIGO
Deus lhe pague… (Olha para dentro da igreja e para os lados, para, então, ageitar melhor os jornais, a «bengala» e o chapéu, tomando posição comoda e definitiva para o «trabalho»… - Em seguida, entre OUTRO MENDIGO – mesma idade, mesmos farrapos, mas de aparência pior, porque revela grande abatimento físisco. É mesmo esquálido e faminto. – MEMDIGO distraidamente à passagem do OUTRO, estende-lhe o chapéu Ah! (Risonho.) Desculpe…Não tinha reparado que o senhor é colega…
OUTRO
Ainda não fiz nada hoje, velhinho. Tenho cigarros. Aceita um?
MENDIGO
São bons?
OUTRO
Hoje, até as pontas que consegui apanhar são
de cigarros ordinários!
( Tira do bolso uma latinha cheia de pontas de cigarros, abre-a e oferece. )
MENDIGO
Muito obrigado. Não fumo cigarros ordinários. Quer um charuto? ( Tira-o do bolso )
OUTRO
( Aceitando espantado. ) Olá!
MENDIGO
É havana! Tenho muitos! Custam 10$000 cada um.
OUTRO
Aceito, porque nunca tive jeito para roubar…
MENDIGO
Nem eu.
OUTRO
Não foram roubados?
MENDIGO
Foram comprados. Ainda não sou ladrão.
OUTRO
Desculpe. É que…
MENDIGO
Não é preciso pedir desculpas. Não sou ladrão, mas podia sê-lo. É um direito que me assiste.
OUTRO
( Sentando-se na escada. ) Acha?
MENDIGO
Acho, mas sempre preferi trabalhar. Como trabalhar nem sempre é possível, resolvi pedir esmola, antes que fosse obrigado a roubar. Pedir dá menos trabalho.
OUTRO
( Alarmado ) E é por isso que o senhor pede?
MENDIGO
Só. O senhor conhece a história do Mundo?
OUTRO
Não.
MENDIGO
Antigamente, tudo era de todos. Ninguém era dono da terra e a água não pertencia a ninguém. Hoje, cada pedaço de terra tem um dono e cada nascente de água tem um dono. Quem foi que deu?
OUTRO
Eu não fui…
MENDIGO
Não foi ninguém. Os espertalhões, no princípio do Mundo, apropriaram-se das coisas e inventaram a Justiça e a Polícia…
OUTRO
Para quê?
MENDIGO
Para prender e processar os que vieram depois. Hoje, quem se apropriar das coisas, é processado pelo crime de apropriação indébita. Porquê? Porque eles resolveram que as coisas lhes pertencessem…
OUTRO
Mas quem foi que deu?
MENDIGO
Ninguém. Pergunte ao dono de uma faixa de terra na Avenida Atlântica se ele sabe explicar porque razão aquela faixa é dele…
OUTRO
Ora! É fácil. Ele dirá que comprou do antigo dono.
MENDIGO
E o antigo dono?
OUTRO
Comprou de outro.
MENDIGO
E o outro?
OUTRO
De outro.
MENDIGO
E estoutro?
Do primeiro dono.
MENDIGO
E o primeiro dono comprou de quem?
OUTRO
De ninguém. Tomou conta.
MENDIGO
Com que direito?
OUTRO
Isso é que eu não sei.
MENDIGO
Sem direito nenhum. Naquele tempo não havia leis. Depois que um pequeno grupo dividiu tudo entre si, é que se fizeram os Códigos. Então, passou a ser crime… para os outros, o que para eles era uma coisa natural…
OUTRO
Mas os que primeiro tomaram conta das terras eram fortes e podiam garantir a posse contra os fracos.
MENDIGO
Isso era antigamente. Hoje, os chamados donos não são fortes e continuam na posse do que não lhes pertence.
OUTRO
Garantidos pela Polícia, pelas classes armadas…
MENDIGO
Sim. Garantidos
pelos que também não são donos de nada, mas que foram convencidos
de que devem fazer respeitar uma divisão na qual foram aquinhoados.
OUTRO
E o senhor pretende reformar o Mundo?
MENDIGO
Tinha pensado nisso, mas depois compreendi que a Humanidade não precisa do meu sacrifício.
OUTRO
Porquê?
MENDIGO
Porque o número de
infelizes avoluma-se assustadoramente…
( Sorrindo ) E foi por isso que desistiu de reformar o Mundo?
Foi. Abandonei a
Sociedade e resolvi pedir-lhe o que me pertence. Exigir é impertinência; pedir
é um direito universalmente reconhecido. Dá prazer a quem se pede, não
causa inveja. O senhor já reparou que ninguém é contra o mendigo?
Porque será? Porque o mendigo é o homem que desistiu de lutar contra os
outros.
Os homens não
precisam de nós…
Precisam, senhor…
Como é o seu nome?
Barata.
Precisam, mas não
dependem ; e é por isso que nos olham com ternura.
Ora! Quem é que precisa de um mendigo?
MENDIGO
Todos! Eles precisam muito mais de nós do que nós deles. O mendigo é, neste momento, uma necessidade social. Quando eles dizem: «Quem dá aos pobres empresta a Deus», confessam que não dão aos pobres, mas emprestam a Deus…Não há generosidade na esmola : há interesse. Os pecadores dão, para aliviar os seus pecados; os sofredores para merecer as graças de Deus. Além disso, é com a miséria de um níquel que eles adiam a revolta dos miseráveis…
OUTRO
Mas quando
agradecem a Deus, revelam o sentimento da gratidão.
2 comentários:
Grande, grande livro!
Julgava-o perdido.
Encontrei-o, agora, no meio de livros do Graciliano Ramos e nem sequer sonho como foi lá parar. Quando o meu avô foi viver para a casa dos meus pais, ainda eu não tinha nascido, levou a navalha de barbear, roupa, sapatos e alguns livros. Não chegavam a vinte, disse-me um dia. Juntou-os aos livros que o meu pai iam comprando. Não chegavam à centena.
Esta peça de teatro de Joracy Camargo, edição de 1935, era um desses livros. Terá sido também a primeira peça de teatro que li. O meu avô, que era um republicano histórico e anti-clerical, gostava imenso deste «Deus Lhe Pague».
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