domingo, 23 de maio de 2021

O LUGAR SUSPENSO DA INFÂNCIA

13 de Setembro de 1991

Num texto do JL, sobre a nova mitologia cultural europeia, Eduardo Lourenço retoma o velho tópico de que apenas fomos felizes no lugar suspenso de uma infância irrecuperável. Quantas vezes não o ouvi dizer, e talvez, sonâmbulo, o tenha repetido? De quando em quando, na fórmula mágica da teoria: a infância é o espaço do Outro.

Sou sensível, como o não seria?, à ressonância intelectual destas formulações, com uma ressalva, que talvez explique tudo, isto é, nada: nenhuma perda, nenhuma relação de nostalgia, nenhum dilaceramento visceral, me liga à infância. Que foi feliz, sim, acho que sim. Mas a única infância verdadeiramente feliz foi a que me acompanhou pela vida fora – até hoje, até amanhã de manhã. Se tenho algum trabalho, é o de merecê-la – dia a dia. Pouco a pouco, fui-me sentindo capaz disso: um desprendimento, uma desenvoltura, uma isenção (sentar-me na relva, rodeado de vida por todos os lados, e olhar a vida a ver-se a si mesma). A minha infância é afinal o pressentimento quotidiano do que tem efectivamente importância.

(Talvez uma excepção, mas insistente: o dia em que festejavam o dia dos meus anos.)

Por vezes, ao fim da tarde, andando por aqui, nestas ruas do Marais, pergunto: não será esta a minha mais bela recordação de infância?

Eduardo Prado Coelho em Tudo o Que não Escrevi

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