A declaração de uma cerca sanitária nas freguesias de
São Teotónio e de Almograve por causa da covid-19 é conclusiva: este país está
em decomposição moral.
Em primeiro lugar temos um primeiro-ministro que
declara em conferência de imprensa, transmitida em direto para todos os órgãos
de comunicação social, estar-se perante, cito, uma "violação gritante dos
direitos humanos" na forma como são ali alojados os trabalhadores
agrícolas imigrantes da Ásia e do Leste Europeu.
António Costa tem razão, constata um puro facto, e
saúdo-o por ter tido a coragem de o dizer. Porém, esta situação - que se repete
em muitas outras zonas do Portugal agrícola - está há anos a ser denunciada por
ativistas, por associações de apoio a imigrantes, por partidos políticos, por
polícias, pela Igreja, por comentadores, pela comunicação social.
Quando António Costa comunica este caso, com o lastro
que ele já tem, está implicitamente a comunicar também que pouco fez para
acabar com esta nova escravatura. E teve tempo para isso. E tem um ministro,
Eduardo Cabrita, que deveria ter tomado seriamente conta da ocorrência e não
tomou.
O presidente da CAP, o líder dos agricultores Eduardo
Oliveira e Sousa, atira as culpas para as empresas de contratação de trabalho
temporário e diz que os "os agricultores não são entidade policial e não
podem saber se todas as pessoas estão a viver condignamente" e ainda que
"não se pode é misturar os casos pontuais que acredito que existam, porque
existem situações marginais em todas as atividades, com a generalidade dos
casos".
Eduardo Oliveira e Sousa ou está a mentir-nos
descaradamente ou ignora a informação do presidente da Câmara de Odemira, José
Alberto Guerreiro: "no mínimo 6 mil" dos 13 mil trabalhadores
agrícolas do concelho, permanentes e temporários, "não têm condições de
habitabilidade".
É muito "caso pontual" junto.
O sindicato dos inspetores do SEF aproveitou para
lembrar que reportou o caso no Relatório Anual de Segurança Interna de 2020.
A direção do SEF comunicou, entretanto, que tem 32
inquéritos em curso sobre o tema em várias comarcas alentejanas e que
identificou no distrito, em 2018 (escandalosamente, não há dados mais
recentes), 134 vítimas de tráfico de pessoas para exploração laboral.
Estas 134 vítimas confrontadas com os "no
mínimo" 6 mil alojados em condições sub-humanas, só em Odemira, desvendam
por si só a ineficácia da fiscalização - e estamos apenas a falar do Alentejo,
falta todo o resto de Portugal...
... Mas descansemos: a Procuradoria-Geral da
República, por sua vez, jura que tem em curso 11, contem bem, 11 inquéritos
sobre auxílio à imigração ilegal em Odemira!
Tudo é mais importante, tudo é mais urgente do que
tratar de acabar com este regresso de Portugal ao estado de há cinco séculos:
um país com alma de negreiro.
A perda a que gradativamente estamos a assistir do
imperativo moral que daria a esta gente o sentido solidário como primeira
prioridade da atividade pública, política, empresarial, policial ou jurídica
teve outra manifestação absolutamente incrível.
Apareceu o bastonário dos advogados, Dr. Menezes
Leitão, a pedir a intervenção no caso da Comissão dos Direitos Humanos da
Ordem.
Julgará o leitor pouco precavido que a ideia era
ajudar os escravizados do Alentejo? Não, que ideia! Para este senhor a violação
dos direitos humanos não está aí, está na requisição temporária pelo Estado dos
alojamentos atualmente abandonados do falido complexo turístico Zmar, para
isolar alguns destes imigrantes infetados com a covid-19.
Para o senhor bastonário, o direito à propriedade
privada é um direito humano precedente ao da saúde pública e à vida de uns
quantos nepaleses, indianos, romenos, moldavos ou de outras nacionalidades
distantes do circuito dos interesses caseiros dos tugas.
Não estamos a falar de ressentidos da vida, que
procuram resolver as suas frustrações na militância no Chega, estamos a falar
de gente que se diz "moderada", que circula pelos tapetes vermelhos
do poder e que se dá ao prazer, de vez em quando, do favor caritativo.
Estamos a falar de alegados democratas que destroem a
fibra democrática e solidária que ainda resta neste país.
Pedro Tadeu no Diário de Notícias-on line
1 comentário:
TRISTEZA, VERGONHA!
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