terça-feira, 18 de maio de 2021

O CORPO FARTA-SE DE TUDO


18 de Novembro de 1942

Estou pior. Mas aquele meu antigo desespero activo de morrer – atenuou-se. Agora olho este apodrecimento com a calma de quem vê um belo e irremediável por-de-sol. A quem julgue (que ilusão, passar-me pela cabeça que alguém possa tomar calor por esta minha agonia!) que a explicação do facto pode muito bem estar na circunstância de o mundo atravessar neste  momento uma hora dramática da sua vida, e, por isso, o egoísmo de conservação do individual ceder perante a carnificina do colectivo, digo desde já que se angana. Quero que outros tenham tanto como eu a dor de asiáticos, africanos e europeus; mas não quero que haja quem sofrido mais. Contudo, com humildade e sinceridade o digo; a minha dor pessoal é minha. Não. Cheguei a isto, porque estou cansado. Desde que me conheço que vivo como se a curva do céu que me cobre fosse um arco, e eu a corda tensa entre os dois extremos. Ora, sabem que uma tensão contínua… Bom, eu não quero física a ninguém. O que é certo é que cá estou onde nunca pensei de chegar, pelo menos com trinta e cinco anos: às razões do meu pai. Quando um dia lhe lhe falava horrorizado da serenidade com que ele encarava a morte, respondeu-me na sua língua:

- O corpo farta-se de tudo, filho. Até de viver.

Miguel Torga em Diário Volume II

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