O jornal Público atingiu níveis de
ilegibilidade. Pelo menos para os meus olhos. Virou neo-liberal e de direita.
Mas ainda mantém uns certos laivos de outros bons tempos.
É o caso de ter iniciado uma colecção, Censura no Feminino, que
reúne 10 obras de autoras portuguesas proibidas pela Censura, publicadas em
fac-símile, e custam, cada um, 6,50 euros.
O primeiro volume da colecção foi Novas Cartas
Portuguesas de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho
da Costa.
Pelos temas abordados, pela qualidade da escrita, o livro
terá de ser, obrigatoriamente, lido por quem nunca o fez e passarão a saber da
dimensão política e social que contém. Os tempos eram os da enganosa primavera
política de Marcelo Caetano mas ainda hoje retém uma assombrosa actualidade.
«E a minha mãe fartou-se de moer o meu pai com
palavras e choros, homem não te metas nestas coisas, olha o resultado que dá, a
gente aqui a morrer de fome e os outros de barriga cheia, que o patrão não os
castigou mas só a ti que eras o das ideias.
Que uma das tarefas dos patrões é a de castigar os
empregados e a tarefa dos empregados é a de trabalhar para os patrões a fim de
estes ficarem mais ricos e mais patrões. Talvez eu um dia case com um patrão.
A verdade é que isso não quer dizer nada, pois quando
o meu pai vem bêbado e bate na minha mãe, grita: aqui eu é que sou o patrão. E
ela cala-se e põe-se a chorar baixinho.»
Segundo Ana Luísa Amaral, foi em Maio de 1971, que Maria
Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa decidiram escrever um
livro a seis mãos.
Em Janeiro de 1972 dão a obra como concluída e, em Abril,
o livro seria publicado pelas Estúdios Cor, então com direcção
literária de Natália Correia que, mesmo tendo sido instada a cortar partes da
obra, a publicou na íntegra.
O pide-censor, a quem a obra foi atribuída
para leitura e opinião, não teve dúvidas:
«Sou do parecer que se proíba a circulação no País do
livro em referência, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de
instrução e processo-crime».
No processo podia ainda ler-se que o livro era
pornográfico e a tentório da moral pública.
A Pide invadiu a editora e as livrarias e procedeu à
apreensão da obra.
Chamadas à esquadra, as três autoras só não foram
imediatamente presas porque Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa pagaram
uma caução de quinze contos. Maria Isabel Barreno, por sua vez, provou que não
tinha posses para isso e, em contrapartida, teve de comparecer uma vez por mês
na polícia, para ofício de corpo presente. Posteriormente, David
Mourão-Ferreira emprestou-lhe o valor para que também ela pudesse pagar a
caução.
O julgamento começou a 25 de Outubro de 1973 e, nos
interrogatórios, a acusação tentou por todos os meios saber quem escrevera o
quê. Nunca o souberam e, Maria Teresa Horta, a única das autoras que ainda está
entre nós, sobre essa autoria, já disse que levava com ela o
segredo.
O julgamento nunca veio a ter um fim.
Em Abril de 1974, um juiz mandava em paz as três
Marias.
Um livro de coragem dentro do cinzentismo ditatorial
daqueles dias tão amargos.
Ana Luísa Amaral, é de opinião que o livro está muito
além do seu tempo. Como as grandes obras normalmente estão. Entendo que este
livro é uma grande obra, é um grande livro dentro da literatura portuguesa do
século XX, dentro da história dos direitos humanos do século XX.
«Nas ancas tenho ainda a marca dos teus dedos; a marca
da tua boca, o traço molhado da tua língua, dos teus dentes.
Desço:
macio deve ser o chão que as árvores conservam com a
sua seiva.
Não necessàriamente meu amor sem ti a liberdade ou a
pressa de morte do meu corpo»
3 comentários:
O jornal Público atingiu níveis de ilegibilidade graças a José Manuel Fernandes.
Será que estarei a ser injusto e precipitado?
Sim, é com o ex-revolucionário que a veia direitista e neo-liberal do «Público» se começa a desenhar. Teve outros intérpretes, mas é ele que cunha o selo. A ambição leva-o a estar em projectos altamente financiados por gente que, eventualmente, não tem dinheiro. mas sabe onde o podem ir buscar. O espalhanço do ex-dono disto tudo é um exemplo flagrante.
Enviar um comentário